Herança, tino comercial e ganância deram a Félix Grandet a fortuna que poupa com desvelo. Todos os anos, no aniversário da filha, ele lhe dá uma moeda de ouro. Mais tarde Eugénie as usa para salvar o primo por quem se apaixonara. Abandonada pelo primo, casa-se com outro pretendente. Enviúva. Fica mais rica do que nunca. E durante o resto de sua vida repete a existência mesquinha e miserável que aprendera do pai.
Eugénie Grandet, um romance de Balzac, tem como cenário a França napoleônica e investidores espertos. Descreve oportunismo e falta de escrúpulos. Mostra a cupidez como um defeito moral que cega gerações. Idéias e sentimentos têm conseqüências: o pai fixado em dinheiro rouba da filha a personalidade que lhe daria a oportunidade de experimentar a vida.
Longe de mim fazer pouco-caso de dinheiro. Bernard Shaw me ensinou que a falta dele é a raiz do mal. E Somerset Maugham, que ele é o sexto sentido sem o qual não fazemos bom uso dos outros cinco.
Mas Félix e Eugénie Grandet erraram ao esquecer que o lugar do dinheiro é na cabeça e nunca no coração. Em outubro de 2008, vale a pena colocá-lo de volta no seu devido lugar, deixar de lado a ansiedade com as perdas financeiras e ganhar perspectiva sobre o momento que vivemos.
Isso é mais fácil de dizer que de fazer, porque a tomada de decisões, ao contrário do que afirmam os partidários da racionalidade econômica, é um processo emocional. A prova é que os investidores compram com entusiasmo na alta das bolsas e vendem em pânico durante a baixa.
O mundo é uma festa durante o boom e o dinheiro fácil separa decisões de conseqüências. O líder nacional acredita que pode gastar sem limites. Os bancos julgam que podem inventar derivativos e oferecer opções cambiais às empresas, que não medem o custo de uma virada. Torna-se difícil vender uma estratégia conservadora a acionistas e investidores, pois tomar emprestado a baixas taxas de juros, enquanto residências e outros ativos estão subindo de valor, permite grandes lucros. A instituição financeira, que se recusa a entrar no cordão da alegria, tem dificuldade de convencer seus acionistas de que os lucros mais altos das outras companhias são insustentáveis. Além disso, na incerteza nunca se sabe se uma bolha é mesmo uma bolha e cada um espera pular fora do perigo antes dos outros. Quando o mercado vira, o pânico se espalha. O operador entra em depressão. O crédito seca. A máquina econômica pára.
Crise nunca tem uma única causa. Muitos fatores se combinaram para originar a bolha que antecedeu o desastre de 2008. Capital global abundante e barato encorajou a tomada excessiva de empréstimos. As baixas taxas de juros e o marketing agressivo de hipotecas se combinaram para criar uma bolha imobiliária. Novos instrumentos financeiros criaram a fé na redução dos riscos dos empréstimos e no crescimento da alavancagem ótima dos bancos. Faltou supervisão adequada (do governo e do corpo de conselheiros dos bancos) das decisões dos gerentes.
A bolha estourou. Os bancos de investimento americanos tornaram-se insolventes. O contágio espalhou-se para a Europa, Ásia e Bahia. As decisões das autoridades ainda não foram suficientes para acalmar os mercados. A taxa Libor subiu às alturas, refletindo a relutância dos bancos em emprestarem uns aos outros. No mundo inteiro ficou impossível conseguir um empréstimo. Enquanto os investidores em desespero procurarem um cofre onde guardar seu dinheiro, as taxas de retorno dos títulos do Tesouro americano e do governo japonês continuarão negativas.
A crise coincide com um momento político delicado. As eleições nos EUA estão próximas, mas ainda faltam três meses para que o novo presidente tome posse. Períodos de transição política não ajudam a construir confiança em medidas adotadas por um governo que se despede do poder. Três meses é uma eternidade no mercado financeiro conturbado.
Até duas semanas atrás era possível argumentar que outras crises bancárias foram ainda mais severas, embora menos transparentes. No final de 1981, se os bancos americanos tivessem os valores em seus balanços declarados com base em valores de mercado (e não com base em valores históricos), teriam sido considerados insolventes, todos eles. Hoje, a contabilidade com base no valor de mercado permite o reconhecimento mais rápido das perdas. Até uma semana atrás, as perdas bancárias ainda não justificavam as referências à Grande Depressão. Hoje, a fraqueza das economias avançadas ameaça multiplicar as perdas que se espalham para o resto do mundo.
A pergunta de muitos trilhões de dólares é se os governos podem torná-las menos dolorosas. O Fed parece acreditar que sim. No Brasil, o ministro da Fazenda e o banqueiro central afirmam que a situação está sob controle e repetem a cantilena que celebra a proteção do colchão de reservas e do câmbio flutuante. Mas tudo não passa de teatro. No mundo do contágio global, onde a crise começa no centro do império, ninguém sabe muito bem o que pode ocorrer. A verdade que valia ontem e continua válida hoje é que quando rico não banqueteia pobre morre de fome.
Entre meados de 2003 e meados de 2008, o Brasil gozou do impacto benéfico do aumento do preço das exportações e da abundância de crédito. Foi fácil para o Banco Central administrar o período de bonança, em que a redução do risco país permitia a apreciação cambial e a queda simultânea da taxa de juros. Agora o ciclo se inverteu. Com a queda dos preços das commodities, déficit em conta corrente e restrição de crédito externo contribuindo para o aumento do risco país, a desvalorização cambial empurra a inflação para cima num mundo dominado por incerteza e pânico.
Não se deixe abater. Leia Emily Dickinson: "Sem saber quando virá o amanhecer, eu abro todas as portas."
Eliana Cardoso é professora titular da EESP-FGV
Site: www.elianacardoso.com
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