Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 19, 2008

A bestialidade eleitoral Gaudêncio Torquato

O que leva uma pessoa culta a agir de maneira inculta? Ou, ainda, o que leva o ser humano a ultrapassar a linha de valores que o cerca?

A indagação, sempre freqüente na mesa das discussões filosóficas desde os tempos da Antiguidade, está na ordem dia deste segundo turno das eleições municipais e se faz presente nas agressões cometidas por candidatos, alguns com histórias bem pontuadas no campo dos direitos humanos. As respostas para explicar a agressividade humana apontam para muitas direções, a partir do desespero dos personagens, como o caixeiro-viajante de Arthur Miller, que, ao ser despedido do emprego, descarta a própria vida e comete suicídio. Mas o lobo de Thomas Hobbes é a configuração mais recorrente para explicar a barbárie humana. Acuado pelo meio, premido pelas circunstâncias, o homem luta para descartar seu próximo: "O homem é o lobo do homem." O que o leva ao extremo? Angústia, desespero, vaidade, desprezo, insegurança, abandono, medo, orgulho, paixão, vingança, entre outros fatores.

Fixando essa planilha na equação eleitoral, é fácil chegar à ilação de que o medo de morrer politicamente ou mesmo aparecer de cara quebrada na foto pós-eleitoral ativa os instintos dos atores ameaçados, motivando-os a empregar a máxima maquiavélica "o fim justifica os meios". Esta abordagem psicológica talvez seja adequada para explicar a pergunta sórdida que a psicóloga Marta Suplicy fez, em seu programa eleitoral, sobre a condição civil do opositor, o prefeito Gilberto Kassab. Receosa de uma derrota, que poderia estreitar os caminhos do seu futuro, a candidata não hesitou em se valer do instinto de lobo, esquecendo o passado de sexóloga e apagando de sua história as batalhas que enfrentou na frente dos direitos humanos, sendo ela mesma vítima de preconceitos.

No Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, as agressões entre candidatos também acirram a disputa, escancarando o fato de que a política é, por excelência, a arena dos lobos mais sanguinários, a confirmar o preceito napoleônico de que a essência da política é a mesma do poder militar, a destruição do inimigo, e também a mesma do general prussiano Klaus Von Clausewitz, de que "a guerra é a continuação da política por outros meios".

O espetáculo de vileza proporcionado pela disputa eleitoral chama a atenção para alguns aspectos. Os valores sagrados e consagrados nas Cartas Constitucionais - a partir do direito à privacidade - são arquivados no baú das conveniências. A condição humana é ofuscada pela irracionalidade sanguinolenta. A indagação da candidata petista, se Kassab é casado e tem filhos, é eivada de maldades. A sordidez consiste numa insinuação que abre nuvens de conotações, até porque, no plano denotativo, o prefeito já afirmara, em entrevistas, sua condição de solteiro sem filhos. A semente destrutiva jogada no campo associativo-cognitivo das massas tem como finalidade a proliferação de inferências, partindo-se do apontamento dos modelos matrimoniados como os exemplos ideais para se chegar à conclusão: solteiro sem filhos não serve para comandar a maior metrópole do País.

No Rio, os candidatos Eduardo Paes e Fernando Gabeira também se digladiam com as armas dos achaques pessoais, recheadas de munição do passado e tentativas de jogar pobres contra ricos, o velho contra o novo, subúrbios contra bairros de elites. Em Belo Horizonte, a campanha igualmente entra nas certidões de nascimento para exibir a bandeira do "rapazinho" contra o "velhinho".

O paradoxo que chama a atenção é o que cerca Marta Suplicy, de perfil progressista e inovador. Sua história, vale reconhecer, endossada pela condição de sexóloga e psicóloga, prima por se identificar com a causa das minorias étnicas e de movimentos libertários, particularmente as associações de defesa dos homossexuais. Como se explica a propaganda na contramão de sua trajetória? Como coexistem a defensora dos direitos humanos e a questionadora de um solteiro sem filhos que se candidata ao cargo de prefeito de São Paulo? Causa estranheza o fato de que o braço direito de Lula, o assessor Gilberto Carvalho, atuando na linha de frente da campanha petista, também defende a estapafúrdia pergunta. Teria ele se dado conta de que os estilhaços desse tresloucado tiroteio batem na digna ex-prefeita Luiza Erundina, eleitora da candidata?

Está em xeque a forma exacerbada de marketing que João Santana, o marqueteiro do presidente, ainda pratica. Como se sabe, as campanhas eleitorais do Brasil têm sido contaminadas por um viés que privilegia a forma em detrimento do conteúdo, apela para a emoção das massas, fabrica factóides, jogando nas nuvens as promessas mirabolantes. Santana continua a aplicar as lições aprendidas com seu mestre, Duda Mendonça. Que importa se a pergunta se veste ou não com o manto ético? O que importa é ver um eleitor preso na teia psicológica e disposto a aceitar a ordem imposta pelo marketing. E a ética? Ah, é um bicho abstrato que só interessa a intelectuais.

Acontece que esse bicho faz coceiras e deixa marcas indeléveis sobre a pele de certos candidatos, marcando-os por toda a vida. As marcas aprofundam o chamado fenômeno da rejeição. Há perfis, como de Paulo Maluf, que exibem sinais fortes da coceira. Já a candidata Marta, cuja rejeição se tem mantido na alta faixa dos 35%, apenas reforça convicções já formadas em torno de seu conceito quando mantém postura rancorosa, a denotar prepotência. Rejeição é um composto que agrega história pessoal, forma de apresentação e expressão, além do palco onde circula o ator político. Não é da noite para o dia que a coceira vai embora. Pomadas cosméticas de propaganda podem aliviar, mas não curar a doença. Uma frase mal pronunciada, um trejeito, uma pergunta discriminatória recompõem as feridas que enfeiam o corpo.

O eleitor sabe distinguir a identidade, coisa real, da imagem, sombra artificial.

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