Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 07, 2007

FERREIRA GULLAR

Uma comédia legal


Não engulo uma lei que permite a um criminoso já condenado ser solto e fugir do país

O CASO de Salvatore Cacciola todo mundo já conhece, mas vamos ter de lembrá-lo, sucintamente, porque, em nosso entender, ele põe à mostra alguns dos aspectos mais incongruentes da Justiça brasileira.
Dono de banco, Cacciola fez uma trapaça que resultou num prejuízo de mais de R$ 1 bilhão ao Banco Central, ou seja, roubou dinheiro nosso. Submetido a julgamento, foi condenado a 13 anos de prisão mas, graças a um habeas corpus, concedido por um juiz do Supremo Tribunal Federal, já saíra da cadeia e se mandara do país. Foi gastar na Itália o dinheiro roubado. Isso faz cinco anos.
Como tem dupla cidadania -essa gente tem tudo!-, não pôde ser extraditado, até que, abusando da sorte, foi passar um fim de semana em Mônaco, e lá o prenderam.
Divulgada essa notícia, um repórter perguntou ao ministro do STF que o soltara se a prisão de Cacciola o deixara aliviado. Com a maior naturalidade, respondeu que não, pois o banqueiro tinha direito à liberdade, já que não fora julgado em última instância. Explicou que o acusado só pode ser considerado culpado quando não couber mais recurso da condenação que lhe for imposta, razão por que, a seu ver, ao se mandar do Brasil, o banqueiro exercera "o direito natural de fugir". Claro, todo criminoso quer escapar da cadeia, só que o ministro não precisava ajudar, não é mesmo?
Mas ele se diz tranqüilo, pois apenas cumpriu a lei, o que é verdade. O problema mesmo é a lei. Na condição de cidadão e leigo, não engulo uma lei que permite a um criminoso, já condenado, ser solto e fugir do país. Até parece que a lei foi feita pelos Cacciola, já que os favorece mais do que aos cidadãos honestos, a quem deveria proteger.
Há certas coisas que me parecem incompreensíveis, como a lei que deixa solto quem já está condenado. É bem conhecido aquele princípio básico do Direito, segundo o qual todo mundo é inocente até prova em contrário, isto é, até que um tribunal o condene. No meu pouco entendimento, penso que, se o sujeito foi condenado, é porque o juiz encontrou provas suficientes para fazê-lo, logo, não é mais inocente. Terá, certamente, o direito de recorrer da sentença, mas já agora como condenado e, por isso, deveria continuar preso, em cumprimento da decisão judicial.
Mas não é isso o que acontece. O ministro mandou soltar Cacciola, alegando que ele havia sido condenado em primeira instância e, enquanto pudesse recorrer, estaria em liberdade. Então para que serve a primeira instância? No legítimo desfrute da lei, Cacciola fugiu e, assim como ele, contam-se às dezenas os criminosos de todo tipo, já condenados, que se encontram foragidos ou simplesmente livres por graça da lei. Acabo de saber que o sujeito que matou dois meninos, na mata da Cantareira, cumpria pena, em regime aberto, por homicídio e roubo. Saía aos fins de semana para matar meninos e voltava para dormir na prisão. Isso é que é vida!
Enquanto isso, o ministro Tarso Genro tocava-se pressurosamente para Mônaco, com o propósito de apressar a extradição de Cacciola, numa afronta ao país que o prendera. Ainda bem que não conseguiu nada. Para que a pressa se, ao chegar aqui, Cacciola será solto mediante um habeas corpus? Esse é um direito que a lei brasileira lhe faculta, como tem facultado a tantos e tantos criminosos de colarinho branco e mesmo sem colarinho.
A coisa mais comum no Brasil é a polícia prender bandidos já condenados, que, soltos, continuavam a matar e assaltar os cidadãos. Se não é o habeas corpus que os livra, é a progressão da pena, benefício esse que foi estendido agora aos que praticaram crimes hediondos, os Fernandinho Beira-Mar e os Elias Maluco. Como a Justiça é cega (a brasileira é também surda), parece não fazer distinção entre o facínora que queima vivo seu desafeto e o sujeito que bateu a carteira do turista no calçadão.
Sabia que, até pouco tempo, nessa comédia que é a aplicação das leis no Brasil, o pessoal que dirige bêbado (pondo em risco a vida dos demais) escapava da punição negando-se a fazer o teste do bafômetro e o exame de sangue, as únicas provas que a Justiça aceita para julgá-los culpados. É que, conforme a norma legal, ninguém é obrigado a produzir provas contra si. Felizmente, isso mudou e agora se entende essa recusa como confissão de culpa. Nada mais óbvio.
Não seria o caso de se fazerem outras mudanças como essa para tornar as leis mais eficazes e, assim, dar aos cidadãos a certeza de que elas existem para protegê-los, e não aos bandidos? Sem essa confiança, viver é quase um pesadelo.

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