A União Européia não pode deixar um acordo vital para sua sobrevivência depender do voto dos cidadãos dos seus Estados-membros |
SOB A presidência da primeira-ministra alemã e com o apoio do novo presidente francês, a União Européia chegou a um novo acordo sobre a assinatura do pacto constitucional interrompido há dois anos pelo "não" da França e da Holanda.
A determinação de Angela Merkel não foi surpreendente, pois o objetivo da União Européia não é ser só uma união aduaneira. Trata-se da formação de um novo e poderoso Estado multinacional que, de um lado, tenha melhores condições de competir internacionalmente, e, de outro, seja uma garantia contra novas guerras.
Um equívoco comum em relação à globalização é acreditar que nela os Estados-nação se tornaram mais interdependentes, perderam autonomia e se tornaram pouco relevantes na definição dos destinos comuns.
Ainda que seja verdadeira a relativa perda de autonomia derivada da maior interdependência, se esquece que esta decorre de um nível de competição econômica entre as nações nunca visto anteriormente, de forma que os Estados-nação não se tornaram menos, mas mais relevantes porque mais estratégicos na competição. É nesses termos -na busca de maior poder estratégico- que é possível compreender a União Européia.
Muitas vezes os países europeus são citados como prova da perda de relevância dos Estados-nação, mas, nesse caso, a perda de autonomia nacional é deliberada, pois o que se está buscando é uma autonomia e uma capacidade de ação coletiva maiores.
Essa meta, porém, não é comum a todos os membros. A Grã-Bretanha, devido a sua aliança histórica com os EUA, está interessada em uma frouxa confederação de Estados nacionais. E os EUA, que já foram fortemente contrários ao euro, por ameaçar a condição do dólar, há anos manobram com coerência para evitar a formação do Estado europeu. Quando houve o "não" dos franceses e holandeses, EUA e Grã-Bretanha respiraram aliviados. Mais que isso: regozijaram-se.
A estratégia que EUA e Grã-Bretanha têm usado para evitar o Estado europeu é sobretudo a do alargamento. A suposição é que a UE deva englobar todos os Estados nacionais que fizeram de alguma forma parte da Europa histórica, menos a Rússia. Com isso, aqueles dois países se beneficiam duplamente: a Rússia, que continua a ser vista como ameaça potencial, fica devidamente contida, e a UE se torna de tal forma grande e heterogênea que perde capacidade real de se transformar em um Estado multinacional.
É duvidoso que a decisão da UE de aumentar o número de membros de 15 para 27 tenha sido correta. Para a "hybris" européia, é agradável ver sua população e seu PIB aumentarem; em compensação, são criados problemas de governabilidade de difícil solução.
A UE é o mais extraordinário exemplo de ação coletiva multinacional de que se tem notícia na história da humanidade. É um incrível trabalho de engenharia social e política envolvendo línguas, religiões, tradições e, o que é mais difícil, níveis muito diversos de desenvolvimento econômico.
Sua motivação inicial foi política: foi a decisão comum de seus dois membros-chave -França e Alemanha- de evitar novas guerras, mas logo se somou a ela uma motivação econômica: a criação de um grande mercado interno que viabilizasse indústrias com grandes economias de escala independentemente da abertura comercial de outros países.
O problema que se coloca agora para a Europa é como recuperar a governabilidade que ficou prejudicada com o alargamento. As decisões não podem mais ser tomadas por unanimidade, mas a alternativa de atribuir poder aos membros de acordo com sua população é igualmente inaceitável.
A UE não tem um senado, mas tem uma Comissão Européia que, até certo ponto, faz com vantagens o papel do senado. Os Estados-membros vão ter que chegar a um compromisso a respeito do problema. No momento, a Polônia e a Grã-Bretanha são os principais obstáculos a um acordo, mas os interesses no compromisso são maiores e afinal prevalecerão.
A pressão dos EUA e da Grã-Bretanha no momento é para que os referendos sejam retomados. Essa seria a única solução democrática, afirmam seus representantes, assim se opondo à proposta de Merkel de aprovar um acordo constitucional reduzido sem recurso aos referendos -sem as formalidades de uma Constituição.
A consulta popular seria, formalmente, solução mais democrática, mas é duvidoso que seja a mais sábia.
A UE não pode deixar que um acordo vital para sua sobrevivência dependa do voto dos cidadãos de cada um dos seus Estados-membros. Estes cidadãos têm, naturalmente, poder para retirar seus países da União Européia. Não podem, porém, ter direito de veto sobre sua forma de se organizar. A UE é uma experiência de ação coletiva muito importante para todos que querem a paz no mundo para poder ser arriscada por um poder de veto desse tipo.