Entrevista:O Estado inteligente

domingo, abril 08, 2007

FERREIRA GULLAR Ser negro

A questão não é racial mas cultural e, sob este ângulo, acredito, deve ser repensada

SER negro no Brasil não é fácil. Talvez não seja tão difícil quanto foi antes, mas não é fácil. E não o é porque o negro teve aqui uma história iníqua, que o marcou e nos marca a todos, fez da cor de sua pele um sinal de desigualdade. Independentemente da vontade de quem quer que seja, a pele de cor negra indica uma origem socialmente "inferior", ainda que saibamos e acreditemos que todas as pessoas são iguais.
A questão não está na minha consciência nem na tua, não está em nossa firme convicção de que raça é um conceito ultrapassado e que, conseqüentemente, diferenças étnicas não implicam diferenças essenciais nem são muito menos indicação de superioridade ou inferioridade.
A ciência hoje ensina que a humanidade é constituída de indivíduos que, resultantes de imprevisíveis combinações de uns mesmos elementos genéticos, guardam sua inconfundível individualidade: alguns são mais saudáveis, outros menos; alguns são mais criativos que outros, mais hábeis que outros, mais tímidos, mais extrovertidos ou mais violentos ou mais desabusados, enfim, uma variedade de tipos que seria impossível enumerá-los todos. E isso não depende da etnia e muito menos da cor da pele.
Por isso, em que pese a tantos traços individuais próprios, somos todos uma única espécie -a espécie humana, definida, mais que tudo, por sua capacidade de inventar-se e inventar o mundo em que vive. O homem, filho da natureza como todos os demais seres, define e enriquece sua humanidade na medida mesmo em que supera impulsos egoístas e se reconhece no outro, irmão do outro, solidário e justo. O racismo é fruto do atraso e da pobreza espiritual, mantém-se na contramão da evolução cultural do homem em direção à fraternidade e à solidariedade.
Certamente é mais fácil para quem não sofre o estigma da descriminação afirmar a igualdade de brancos e negros, de brancos e mulatos. Não lhe pesa fazê-lo, uma vez que, dada a descriminação latente na sociedade, essa afirmação, partindo de um branco, pode até parecer um gesto generoso -quando é apenas uma constatação óbvia e, muita vez, a expiação de uma culpa herdada.
Tudo isso ficou mais claro após ter eu percebido que a pessoa de cor negra traz, estampada na pele, uma história que a identifica com a escravidão, com a submissão, com a inferioridade da condição social, imposta pelas circunstâncias históricas. Deve-se entender que vivemos num mundo de valores inventados, nos quais acreditamos, sejam falsos ou verdadeiros.
Na sociedade escravista, o negro era tido e tratado como "bem de fôlego", igual às alimárias. Embora o senhor de escravos não lhes pudesse negar a condição de ser humano, tratava-os como um animal de sua propriedade, sobre o qual tinha poder quase absoluto. Em tal situação, era-lhe conveniente considerá-lo como um ser inferior. Mas muitos, como os abolicionistas, indignavam-se com essa condição inumana imposta ao negro escravo e com o falso e conveniente conceito de sua suposta inferioridade. Entre os negros também havia os que chegavam a aceitar como verdadeira a própria inferioridade, mas havia também os que se rebelavam e fugiam para os quilombos, redutos de resistência, onde viviam como homens livres e insubmissos.
Bem, é toda uma história sabida e que, se a relembro agora, é com o propósito de, juntos, a repensarmos, para ver mais claro a questão do negro e para que se superem os mal-entendidos que ainda dificultam a sua compreensão. Estou certo de que não existe conflito racial no Brasil, em que pese os restos de preconceitos que irrompem aqui e ali; mas, quando irrompem, são imediatamente denunciados, repelidos e punidos, porque é um consenso consignado em lei que, neste país, preconceito racial é crime.
Não obstante, não basta a lei Afonso Arinos para impedir que a questão racial se mantenha presente. Não basta o fato de que a maioria da população brasileira, em grande parte mestiça, não alimente preconceito racial, para que o negro e o mulato se sintam de fato à vontade na sociedade. Se a pessoa tem a pele negra ou parda é porque descende de escravos, não de senhores; carrega um passado de humilhações. O preconceito está em se admitir que a origem social determina o valor do indivíduo, o que é falso. Isso não justifica alimentar ódios e ressentimentos contra os brancos de hoje, aos quais também repugna nosso passado escravista. A questão não é racial mas cultural e, sob este ângulo, creio, deve ser repensada.

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