O Conselho de Justiça tenta furar o teto, recua
e denuncia tribunais que o fazem – que, por sua
vez, esperneiam e não cortam supersalários
Otávio Cabral e Diego Escosteguy
O teto salarial do funcionalismo público brasileiro é o que se pode chamar de lenda urbana. Está previsto pela Constituição de 1988, foi devidamente regulamentado e entrou em vigor há sete anos – mas nunca existiu para valer. Submetido à pressão constante do movimento dos fura-teto, formado pela elite do funcionalismo, o primeiro teto salarial foi fixado em 8.500 reais, em 1998. De lá para cá, já sofreu tantas violações que seu valor subiu para 24.500 reais, um acréscimo de 189% em oito anos. Na semana passada, o movimento dos fura-teto voltou a se manifestar. A primeira tentativa ocorreu no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, que mandou um projeto ao Congresso prevendo o pagamento de um jetom de até 5.880 reais a três de seus quinze integrantes – e, assim, o salário da presidente do CNJ, a ministra Ellen Gracie Northfleet, que também preside o Supremo Tribunal Federal, passaria de 30.000 reais. O projeto pegou tão mal que a própria ministra pediu ao Congresso que abandonasse a matéria. Caso encerrado?
Nada disso. Assim que o projeto para furar o teto no CNJ foi deixado de lado, o próprio CNJ divulgou um estudo sobre os salários pagos ao Judiciário. A pesquisa descobriu que existem quase 3.000 salários acima do teto. O maior deles é de quase 35.000 reais, pagos à viúva de um desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Seus vencimentos chegaram a esse valor com base numa lei estadual que permite a concessão sem limite definido de qüinqüênios – por uma lei nacional, é proibido dar mais do que sete qüinqüênios. O desembargador, cuja identidade não foi revelada, conseguiu adicionar dez qüinqüênios ao seu salário. Na quarta-feira, um dia depois da divulgação da lista, os presidentes de dezessete tribunais de Justiça reuniram-se com a ministra Ellen Gracie para discutir o assunto. Na reunião, os desembargadores disseram que não vão cortar os benefícios que excedem o teto até dezembro, como pedira o CNJ, e que pretendem analisar cada caso individualmente. Além disso, já disseram que, para evitar cortes que venham a julgar inadequados, podem recorrer à Justiça.
Em qualquer um dos três poderes da República, as tentativas de furar o teto salarial são recorrentes, mas a atividade mais febril sempre foi a do Judiciário. Depois de ser regulamentado em fevereiro de 1999, o teto salarial sofreu sua primeira violação já no ano seguinte. Os ministros do Supremo Tribunal Federal entenderam que tinham direito a receber um auxílio-moradia, no valor de pouco mais de 3.000 reais, e que esse benefício não precisaria respeitar o teto. Ou seja: o teto, que na época era de pouco mais de 12.000 reais, com o auxílio-moradia passou dos 15.000 reais. De lá para cá, houve várias outras tentativas bem-sucedidas de furar o teto (veja quadro). O que chamou a atenção para o assunto na semana passada foi a postura aparentemente contraditória do CNJ. O mesmo conselho que exige dos tribunais de Justiça o cumprimento do teto pretendeu, ele mesmo, através de um projeto apresentado ao Congresso, furar o teto. A situação, porém, é um pouco mais complexa. Dos quinze integrantes do CNJ, doze têm dedicação exclusiva e, por isso mesmo, não receberiam nenhum jetom por participar de reuniões do órgão. Mas há três conselheiros que acumulam a função com seus afazeres normais em outros tribunais.
É natural que, nessas circunstâncias, esses três membros do CNJ passassem a receber alguma gratificação. Na semana anterior, para justificar o pleito de receber um jetom, a ministra Ellen Gracie chegou a mencionar a superposição de trabalho. É razoável que ninguém tenha de trabalhar mais sem ganhar mais. O que caiu mal para o CNJ, mais do que o próprio jetom, foi seu valor. Definiu-se que cada reunião valeria 2.940 reais e, como são duas por mês, o adicional chegaria a 5.880 reais. Por que 2.940 reais por reunião? O CNJ fez o seguinte cálculo: um ministro do STF que acumule suas funções com a de membro do Tribunal Superior Eleitoral recebe 700 reais por reunião – sendo que são feitas, no máximo, oito reuniões mensais. Assim, esse ministro ganha, no máximo, 5.600 reais de gratificação eleitoral. O CNJ, então, para definir seu próprio jetom, pegou o valor máximo pago de adicional eleitoral (5.600 reais) e ainda aumentou uns trocadinhos (para ficar em 5.880 reais). Não há nenhuma explicação razoável para o fato de o cálculo ter sido feito sempre com os valores mais altos.
A definição de um teto salarial para o funcionalismo é uma obra brasileira. Em outros países, costuma-se estabelecer simplesmente o salário de cada função. Nos Estados Unidos, por exemplo, o maior salário obedece à lógica mais elementar: é o de presidente da República, que ganha, em valores de hoje, 400.000 dólares anuais. Os demais salários não superam o do presidente, mas também não são estabelecidos em função deste – o que ainda tem a vantagem de impedir o movimento em cascata cada vez que o salário mais alto sobe. No Brasil, a idéia do teto surgiu devido ao conjunto de malandragens e chicanas a que uma parcela dos funcionários recorre para aumentar seu próprio salário. O mais alto salário do Executivo, por exemplo, é pago a um professor da Universidade Federal do Ceará. Ele recebe 38.300 reais por mês. A mágica do seu supersalário está numa decisão judicial que lhe garantiu 26.000 reais mensais a título de repor perdas salariais do Plano Collor, de 1990. Para chegar aos 38.300 reais, o professor ainda conta com uma gratificação por tempo de serviço e outra por ter ocupado cargo de direção na universidade – gratificação que segue recebendo mesmo depois de deixar o cargo de direção...
Os últimos levantamentos disponíveis indicam que, no Judiciário, existem exatamente 2.978 salários acima do teto. No Executivo, são 129 salários. No Legislativo, não há um levantamento completo, incluindo os legislativos estaduais e municipais, mas sabe-se que o mais alto salário pago no Congresso Nacional é de quase 35.000 reais. Quem o recebe é o secretário-geral da Câmara dos Deputados, Mozart Vianna de Paiva. Ele conta que, ao aposentar-se em 2000, foi convidado pelo então presidente da Câmara, deputado Michel Temer, a permanecer na função – e, para tanto, ganhou um salário de 10.300 reais. Juntando a aposentadoria com o novo salário, chega-se a quase 35.000 reais. "O salário é alto, mas sempre pus o cargo à disposição de todos os presidentes desde o Michel Temer. Todos, no entanto, pediram que eu ficasse", diz Vianna de Paiva. Neste ano, a União vai gastar 105 bilhões de reais para pagar os salários dos funcionários dos três poderes – a maior parte para o próprio Executivo. O gasto total com salário corresponde a 19% do Orçamento da União. É o segundo maior item de despesa, ficando atrás apenas dos gastos com a Previdência Social.
"O objetivo do teto é cortar salários exorbitantes, conter o gasto com funcionalismo e racionalizar a administração da folha de pagamento. Com isso, evitar a explosão das contas públicas", diz o economista Alexandre Marinis, da consultoria Mosaico, em São Paulo. "Mas o teto não pega por causa do corporativismo e do Judiciário, que muitas vezes legisla em causa própria. É um absurdo, em um país carente como o Brasil, pessoas legislando em causa própria para receber mais de 30.000 reais." Com o histórico de violações sistemáticas, o teto salarial corre o risco de acabar virando piso salarial. Já existe preocupação nesse sentido. "O teto salarial deve ser tomado como um limite que seja alcançado pelas pessoas que estão no fim de sua carreira", diz o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. Parece óbvio, mas não é. Em Rondônia, por exemplo, juízes de primeira instância estão começando a carreira com salário de quase 20.000 reais – valor muito próximo do teto nacional atual, que é de 24.500 reais. Pelo que a história ensina, é possível que o movimento dos fura-teto resolva agora defender aumento do teto, com o argumento de que ele está muito próximo do salário inicial em Rondônia. E assim começa uma nova cascata salarial.
O QUE ELES DIZEM
VEJA quis saber o que as cinco maiores autoridades da República pensam sobre os sistemáticos furos do teto salarial do funcionalismo. A todos, mandou uma mesma pergunta: "O senhor (ou a senhora) acha que o teto salarial do funcionalismo público, de 24 500 reais, deveria ser inviolável em quaisquer circunstâncias?". Das autoridades consultadas, a única que não respondeu foi a ministra Ellen Gracie, presidente do Supremo Tribunal Federal. Confira as demais respostas:
Ricardo Stuckert/PR |
Lula, na Nigéria, após enfaixar o pé devido a uma torção: posição clara sobre o teto |
"Todos sabem de minha luta histórica pela construção de um Estado efetivo no Brasil, dotado de um funcionalismo público competente e bem remunerado. Os salários do setor público devem ser justos e dignos, mas condizentes com a realidade econômica do país. Não vejo sentido algum na definição de um teto salarial para o funcionalismo que não seja rigorosamente respeitado. Portanto, sou contra qualquer verba suplementar aos 24 500 reais definidos pela atual legislação – um rendimento que se equipara a alguns dos melhores salários pagos no setor privado."
Luiz Inácio Lula da Silva,
presidente da República
Roberto Jayme/AE | "A avaliação não pode ser feita individualmente, tem de ser fruto de uma decisão conjunta dos três poderes para que se caminhe na direção da adoção eficaz de um teto único. É preciso que o teto seja regulamentado para que se garantam a isonomia, o equilíbrio das contas públicas e leve em conta a austeridade fiscal." Renan Calheiros, presidente do Senado |
| Andre Dusek/AE |
Antonio Cruz/ABR |
"A regra geral é a de que teto é teto. Mas a própria Constituição deixa questões passíveis de dúvida, como é o caso dos conselhos nacionais de Justiça e do Ministério Público. A Constituição fala em teto para uma função, mas alguns membros dos conselhos exercem duas funções. O melhor caminho é deixar o Supremo Tribunal Federal eliminar definitivamente essa dúvida."
Antonio Fernando de Souza,
procurador-geral da República