Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 02, 2006

A polícia do sushi


Japão decide criar certificado para dizer
qual é a autêntica comida japonesa


Thomaz Favaro

Fernando Moraes
Tradicionalista, Shigeru Hirano critica inovações: "Chame do que quiser, menos de sushi"


NESTA REPORTAGEM
Quadro: Do jeito nipônico

A culinária é o produto cultural japonês de maior expansão global. Estima-se que existam mais de 20.000 restaurantes de culinária nipônica fora do Japão, e a previsão é que o número dobre até 2009. O que o governo japonês acha disso? Bem, pode-se dizer que chegou à conclusão de que é hora de separar o sushi do shoyu. No mês passado, as autoridades anunciaram a criação de um certificado de autenticidade a ser conferido aos restaurantes fiéis à tradição culinária japonesa. O objetivo é duplo. O primeiro é preservar a cultura milenar personificada em bolinhos de arroz. O segundo, criar um circuito mundial de casas cuja certificação sirva de referência para fregueses interessados em autenticidade. A questão é como fazer isso. As regras para a certificação ainda não foram estabelecidas, mas diplomatas japoneses já compilaram uma lista informal do que consideram os principais pecados cometidos por restaurantes nos Estados Unidos e na Europa. Entre as heresias estão os sushis com cream cheese – até recentemente os laticínios tinham no Japão apenas uso medicinal – e a existência de pratos coreanos, vietnamitas e tailandeses no cardápio.

A decisão de criar o certificado de autenticidade, que deverá estar pronto no próximo ano, foi saudada pelos puristas da cozinha nipônica. Muitos sushimen, inclusive no Brasil, torceram o nariz. Não vêem sentido em estabelecer regras tradicionalistas para uma culinária que só tem ganhado com a influência de outras culturas e com a inclusão de novos ingredientes. São três as principais razões para o sucesso mundial da comida japonesa. A primeira está relacionada ao cuidado com o visual na apresentação dos pratos e ao perfeccionismo no corte e preparo dos alimentos. A segunda é a reputação de alimentação leve e saudável, rica em proteína e com baixos teores de gordura e calorias. Por fim, trata-se de uma cozinha diferente sem ser excessivamente exótica – salvo exceções, como as opções com animais vivos, dificilmente encontradas fora do Japão.

O que deixa os puristas de cabelo em pé é justamente o fato de que, para darem conta da demanda, muitos restaurantes acabam por contratar novatos com pouca ou nenhuma familiaridade com a cozinha nipônica. Há também a preocupação com a substituição dos ingredientes originais para baratear os custos. Existem restaurantes brasileiros que servem sushis com arroz do tipo agulhinha, em lugar do original japonês. A troca altera irremediavelmente o sabor e a consistência das peças. Do lado negativo, a certificação pode inibir a inovação nos bons restaurantes, tão importante na popularização da cozinha japonesa. Para a adaptação a paladares distintos (e distantes), as receitas nipônicas ganharam aromas e temperos que não existiam no Japão.

Lailson Santos
URAMAKI COM PIMENTA
O enrolado de atum batido com maionese e cebolinha leva pimenta-vermelha. Os puristas da culinária japonesa rejeitam esse prato por causa da maionese e da pimenta


No Brasil, a quantidade de açúcar no arroz foi reduzida para atender um público avesso a comidas agridoces. A falta de sal é compensada pelo uso excessivo do molho de soja, o shoyu. Utilizado com parcimônia no Japão, o condimento caiu no gosto do brasileiro. Algumas adaptações deram origem a novos pratos que hoje enriquecem a culinária nipônica. "No Brasil, quando os restaurantes saíram dos redutos dos imigrantes japoneses, os chefs passaram a fazer maior uso da licença poética", diz Jo Takahashi, diretor de arte e cultura da Fundação Japão, em São Paulo. Os sushimen nordestinos criaram os sushis de carne-seca, goiabada e queijo de coalho. "Essas invenções me dão vontade de chorar. Pode chamar do que quiser, mas não de sushi", diz o japonês Shigeru Hirano, dono do restaurante paulista Tanuki.

O governo de Tóquio já fez o primeiro teste da certificação em Paris, neste ano. Depois de analisarem oitenta restaurantes na cidade, os fiscais japoneses reprovaram um terço deles. Países com cozinhas bastante difundidas, como a Itália e a Tailândia, já criaram fórmulas semelhantes para preservar a tradição culinária. A verdade é que nenhuma dessas iniciativas alterou os rumos da cozinha italiana ou da tailandesa. O mesmo deve ocorrer com o policiamento japonês. Um dos motivos é que nada, no fundo, é totalmente autêntico. Até iguarias consideradas genuinamente japonesas receberam influências de outros povos. As frituras, por exemplo, conhecidas como tempuras, foram uma contribuição de missionários portugueses no século XVI. Dependendo do grau de purismo, sobra pouca coisa no cardápio japonês.

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