Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 16, 2006

Os apertos da classe média brasileira

Congelaram a classe média

Mola propulsora do avanço das nações,
ela está imobilizada no Brasil por um
Estado ineficiente e pelo crescimento
medíocre da economia


Giuliano Guandalini e Julia Duailibi


Na próxima semana, o Brasil viverá o seu 26º Natal em cenário de pasmaceira econômica. As feridas causadas por esse longo calvário são visíveis sobre o lombo de um segmento em particular da sociedade: a classe média. Ao fim de 2006, ela se encontra curvada sob uma brutal carga tributária, sufocada por gastos com serviços como educação e saúde (que deveriam ser financiados pelos seus impostos) e tolhida em sua capacidade de poupar e adquirir patrimônio. Mas há um segundo aspecto na crise da classe média – e ele não interessa apenas aos brasileiros que já pertencem a ela. Ao contrário do que vem acontecendo em países que estão chamando a atenção do mundo, quase não se observa expansão na classe média do Brasil. Seu tamanho em relação à população total ficou praticamente inalterado nos últimos 25 anos. Essa é uma notícia ruim para o país e uma sombra sobre o seu futuro. Ela revela que os pobres estão até se mantendo de pé graças às políticas assistencialistas como o Bolsa Família, mas não estão subindo na escala social. A notícia também evidencia que a própria classe média não está beliscando patamares mesmo que inferiores do mundo dos ricos. Em resumo, a classe média brasileira está ensanduichada. Obviamente, estar no meio faz parte de sua própria definição. O que perturba é o congelamento, a imobilidade numérica e de pujança desse grupo social no Brasil. Quem está dentro não sai, quem está fora não entra.

Rogerio Cassimiro/Folha Imagem
Decoração natalina no Shopping Iguatemi, em São Paulo: consumo das famílias cresce, mas o futuro segue nebuloso

Existe uma relação direta entre o progresso de um país e a força de sua classe média. Isso está sendo demonstrado não só por exemplos atuais como o da China e o da Índia, mas também por histórias como a da Inglaterra na Revolução Industrial ou a dos Estados Unidos dos séculos XIX e XX. Motor econômico das sociedades livres tanto pelo empreendedorismo quanto pelo consumo, a classe média é também a grande produtora de idéias e cultura, e a garantidora da estabilidade política. Triste o país incapaz de cultivá-la.

Definir a classe média é uma tarefa escorregadia. Em 1883, Sigmund Freud, criador da psicanálise e um integrante respeitável da classe média vienense, observou à sua noiva, que comentava um encontro com um grupo de operários: "Seria possível mostrar que eles são bem diferentes de nós em seus julgamentos, em suas crenças e esperanças, e na maneira como trabalham. Há uma psicologia do 'povo' que é bem diferente da nossa". Atitudes e valores sempre fizeram parte das tentativas teóricas de traçar um perfil da classe média. Critérios como a ocupação e a escolaridade também são usados por pesquisadores, assim como dados econômicos tais quais renda e padrão de consumo. Os resultados podem variar bastante conforme a metodologia.

Baseada em critérios de classificação do Banco Mundial e das consultorias McKinsey e Economist Intelligence Unit, VEJA estimou a evolução, no Brasil e em outros quatro países emergentes, da proporção da classe média em relação ao total da população entre 1996 e 2006. Considerou-se como classe média o universo de famílias com rendimento entre 15.000 dólares e 75.000 dólares anuais – referência semelhante ao parâmetro usado pelo Banco Mundial. No Brasil, esses valores se situam aproximadamente entre 3.000 e 15.000 reais ao mês, levando-se em conta o poder de compra local. Cálculos semelhantes foram feitos para os demais países. O resultado impressiona. A proporção da classe média no Brasil está estagnada. Ela cresceu um quase nada. Saiu de 20% para 21% da população brasileira. No mesmo período, pulou na Rússia de 9% para 34% da população (uma elevação de 278%); no México, de 19% para 43% (126%). Em apenas uma década as classes médias russa e mexicana tornaram-se mais representativas em suas respectivas sociedades do que a brasileira. Também avançaram a passos largos as classes médias da China e da Índia. Em 1996, elas representavam, respectivamente, 1% e 4% de suas populações. Em 2006, pularam para 12% e 13%. Juntos, os dois gigantes asiáticos criaram 230 milhões de consumidores de classe média, um contingente maior do que a população brasileira. Em dois anos, a China deverá ter um quinto de sua população no "estrato médio" (o Partido Comunista chinês convenientemente evita usar a palavra classe, termo de sangrentas conotações na China). A Índia deverá chegar ao mesmo porcentual chinês de classe média em 2009.

Por que a classe média brasileira parou de crescer? É difícil apontar apenas uma causa em um país onde o Estado obriga o cidadão de classe média a trabalhar quase cinco meses do ano apenas para pagar os impostos e onde a burocracia reprime o impulso empreendedor da população. Os números compilados por VEJA mostram uma relação simbiótica entre o crescimento da classe média e o do PIB dos países. Quem puxa quem? O PIB cresce porque a classe média avança ou a classe média avança porque o PIB cresce? O paradoxo não se resolve facilmente. No decorrer das duas últimas décadas, o Brasil teve um aumento médio no crescimento do PIB de apenas 2,3% ao ano. Descontando-se o crescimento vegetativo da população, o avanço da riqueza per capita foi de insignificante 1% ao ano. Curiosamente, a classe média passou de 20% a 21% da população – um aumento relativo de 5%. Entre 1930 e 1980, quando a economia brasileira causava inveja ao mundo, a riqueza per capita expandiu-se em média 4% ao ano. Foi justamente no auge desse período, na industrialização e urbanização do fim dos anos 50, que a classe média brasileira ganhou músculos. Os números não são suficientes para resolver o paradoxo de quem é vagão e quem é locomotiva. São claros o bastante, porém, para mostrar que o fenômeno de criação de riqueza nacional anda de braços dados com a multiplicação da classe média.

De 1980 para cá, apenas em dois breves períodos houve um aumento significativo da classe média brasileira: em 1986, com o Plano Cruzado, e dez anos depois, como efeito do Real. Em ambos os momentos, a queda da inflação propiciou um aumento dos salários reais. Mas nas duas ocasiões os avanços foram transitórios – apenas soluços estatísticos. O país foi abalado por crises financeiras e os ganhos logo foram revertidos. Autor de um estudo recente sobre o assunto, o economista Sérgio Vale, da consultoria MB Associados, diz que até mesmo a educação, mecanismo clássico pelo qual a classe média garante que seu padrão de vida seja reproduzido de geração a geração, dá sinais de emperramento. "O simples fato de ter educação superior já não é mais garantia de bons salários", diz Vale. Seu estudo demonstra que, entre 2001 e 2006, a maior expansão na contratação de pessoas com nível universitário se deu na faixa de até três salários mínimos. Enquanto isso, na faixa acima de dez salários mínimos, típica da classe média, houve destruição de vagas.

O pai de todos os economistas, o escocês Adam Smith (1723-1790), conseguiu intuir o efeito que o crescimento da renda causava sobre o moral de uma nação. "É no momento de progresso, quando a sociedade está avançando na aquisição de riqueza, mais do que no período em que ela já adquiriu o seu conjunto completo de riquezas, que a condição da maioria das pessoas parece ser a mais feliz e confortável. O ânimo se abate na estagnação e se torna infeliz no declínio." A economia moderna confirmou e complexizou o raciocínio de Smith. Como observa Benjamin Friedman, professor de economia da Universidade Harvard, o sentimento de bem-estar econômico é sempre medido em relação ao próximo – e a si mesmo em tempos passados.

Ganhos de renda podem causar uma euforia momentânea, que logo se apaga. Apenas quando o crescimento e a mudança são persistentes, o sentimento de bem-estar se sustenta. Em casos de estagnação, surge o medo da queda. A classe média brasileira não é a única que precisa lutar cotidianamente com esse espectro. Mas entre nós essa luta está mais renhida.

A sensação de estagnação da classe média brasileira, à parte ser real, dói mais quando comparada aos bons tempos vividos em décadas passadas. Os brasileiros de classe média conquistaram privilégios incomuns e os mantiveram e ampliaram até o fim dos anos 80. Além disso, as circunstâncias demográficas e sociais do país abrem às famílias de classe média acesso a luxos que poucos habitantes ricos dos países avançados possuem – o mais óbvio deles é a abundante e barata mão-de-obra para trabalhos domésticos. Mas, como isso sempre foi assim, segundo mostrou o professor Friedman, pouca gente se dá conta de quanto esse privilégio é raro. A Previdência Social é outra conquista que, por ser antiga, não contribui mais para aumentar a auto-estima da classe média. "No Brasil, uma mulher pode se aposentar aos 52 anos e tem uma expectativa de vida escandinava", diz o economista Fábio Giambiagi. Nas últimas décadas, a abertura econômica do país trouxe outras vantagens. Bebe-se mais vinho hoje do que há dez anos, mais gente anda de carro, existem mais e não menos shopping centers.

Apesar disso – ou talvez por causa desses avanços –, os brasileiros que se situam entre os ricos e os pobres na escala social vivem em constante estado de alerta. As conquistas estão aí, mas até quando? E a que preço? O preço de atingir e manter o status quo de classe média no Brasil de hoje tornou-se quase impagável. O grande culpado é o Estado, entidade gulosa tocada por burocratas cujo instinto básico é se perpetuar. "O Estado brasileiro insiste em não caber dentro do PIB", diz com a agudeza costumeira o economista Delfim Netto. Haja imposto. Em 1994, a arrecadação de impostos representava 28% e hoje caminha para 40% do PIB brasileiro. Quem pagou boa parte desse aumento foi a classe média. Prova disso é que a carga tributária média do país foi de 38% do PIB em 2005, mas para a classe média esse fardo ficou ainda maior: 43% de seus rendimentos são tragados pelos impostos. De acordo com cálculos do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), a classe média contribui com 70% dos impostos sobre a propriedade (como IPVA e IPTU) e paga 60% do total arrecadado com o imposto de renda da pessoa física. Ironicamente, esse aumento da carga tributária foi necessário porque o governo passou a gastar cada vez mais com seus programas de esmola social. Enquanto em países como a China e a Índia a redução da pobreza decorre do crescimento econômico e da melhora na educação, no Brasil o combate à miséria ocorreu via gastos públicos cada vez mais generosos. Ingredientes poderosos dessa política foram o Bolsa Família e o aumento do salário mínimo, que dobrou seu poder de compra nos últimos dez anos.

Como governos não geram riqueza, esse dinheiro saiu do bolso de alguém. Quem pagou a conta? O contribuinte, ora bolas! Ele ainda paga uma segunda vez. Além de arcar com seus tributos, o integrante da classe média despende uma gorda fatia de sua renda com serviços como educação, saúde e segurança, que, em tese, deveriam ser prestados pelo governo: de 1980 para cá, o comprometimento da renda com esses gastos saltou de 12% para 31%. A má qualidade das escolas públicas e dos hospitais do Estado empurrou as famílias de classe média para o colégio particular e para o plano de saúde privado.

Outro fator no aperto da classe média é o surgimento de necessidades de consumo. Como lembra o economista Marcio Pochmann, da Unicamp, "a maneira como a classe média consome é essencial na construção de sua auto-imagem". É inimaginável hoje em dia uma família de classe média que não tenha celular, computador e internet – de preferência com a tecnologia mais avançada. Via de regra, telefones celulares são trocados a cada vinte meses, por exemplo. Mas isso não significa que, de maneira geral, a classe média esteja consumindo mais (quando se levam em conta itens como vestuário, alimentação, higiene ou lazer). "Após o Plano Real, entre 1995 e 1998, a classe média subiu um degrau na pirâmide de consumo. Desde então, não se moveu mais, diferentemente da classe pobre", diz Margareth Utimura, diretora do instituto de pesquisa LatinPanel. Mais impostos, mais gastos com serviços, mais imperativos de consumo fizeram com que a poupança da classe média desabasse. Segundo o IBGE, em 1987 as famílias do segmento conseguiam guardar 11% de seus rendimentos e assim investir na ampliação do patrimônio próprio. Em 2003, esse porcentual recuou a míseros 4%.

Em paralelo a tudo isso, observa-se certa orfandade política da classe média. Não que, ao longo da história do país, ela tenha contado com partidos inteiramente associados aos seus interesses. Na década de 50, a UDN esteve próxima de desempenhar esse papel. A classe média daquele período encontrou um ídolo em Carlos Lacerda, o maior nome do partido. Mas o udenismo abrangia outros setores da sociedade – no Nordeste, por exemplo, estava ligado às oligarquias agrárias. No quadro político atual, o discurso sobre a classe média ocupa um lugar periférico. O que permanece no centro do palco é o combate à miséria – como ficou claro nas últimas eleições presidenciais. A campanha de Lula adotou uma tática dupla: investiu na polaridade entre "elite" e "povo" e, de tempos em tempos, fez um aceno preventivo à classe média. Na propaganda eleitoral da TV, houve programas com propostas para favorecer esse grupo, no campo da ampliação do crédito ou da desoneração tributária. Em um evento no começo do mês passado, já reeleito, o presidente disse: "Criou-se o sofisma de que alguém quer dividir o Brasil entre ricos e pobres. Não, eu não quero dividir, eu já nasci com ele dividido. O que eu quero é repartir o pão produzido de forma mais justa, que uma parte da população vá para a classe média e a classe média suba mais um degrau". Só o fim da estagnação poderá abrir caminho para essa transformação. Só a renúncia da burocracia estatal em sugar a última gota de riqueza gerada pela sociedade ligará os motores do investimento produtivo – sem o qual a estagnação não pode ser vencida.

A CLASSE MÉDIA EMPREENDEDORA

Oscar Cabral

A família Freire: Ricardo, Nélia (sentados), Rafael (à esq.) e Leonardo. Eles representam a fatia da classe média cujo perfil mais cresce atualmente. Trata-se de um grupo formado por milhões de pequenos empresários. Esse empreendedorismo de classe média nasceu do conflito entre o desejo de ascensão social e a queda acentuada de oportunidades de emprego com remuneração superior a três salários mínimos. No Rio de Janeiro, os Freire, que têm uma distribuidora de baterias para carros, ganham cerca de 15 000 reais por mês. O problema são os impostos. Eles consomem 16% da renda e estão no topo da lista de custos da família. "Pagamos imposto para tudo. Não fosse essa despesa, conseguiríamos até economizar um pouco mais", diz Ricardo.

A CLASSE MÉDIA ASSALARIADA

Lailson Santos


No início da década de 80, os assalariados representavam 65% da classe média. Hoje, são pouco mais de 50% – na outra metade está a crescente massa de proprietários de pequenas empresas. A família Alves (Hamilton, Sueli e o filho, André) foi no contrafluxo dessa tendência empreendedora. Há quatro anos, deixou São Paulo, onde tinha uma pequena empresa de pinturas e reformas. Partiu para Itu, no interior paulista. Lá, o chefe da família tornou-se assalariado, na área de logística de uma grande fábrica de sucos. Eles não se arrependem: "Com a empresa, ganhávamos bem, mas gastávamos demais. Hoje, nosso orçamento é mais estável", diz Hamilton. Da renda mensal média de 4 000 reais, o principal gasto fica por conta da educação de André, de 13 anos, que consome 20% do orçamento familiar. "Nossa prioridade é garantir um bom futuro profissional ao nosso filho", diz Sueli.

OBJETOS DE DESEJO DA CLASSE MÉDIA, ONTEM E HOJE

Fotos Pedro Rubens

1981*
Chevrolet Opala = 32 000 reais
TV de 20 polegadas em cores = 3 500 reais
Linha de telefone = 10 000 reais
Aparelho de telefone = 500 reais
Aparelho de som 3 em 1 = 3 000 reais
Enciclopédia = 5 000 reais

VALOR TOTAL = 54 000 reais

Tempo de trabalho necessário para comprar esses produtos = 9 meses e 18 dias

* Os valores dos produtos foram corrigidos para o equivalente a dinheiro de hoje

HOJE

Chevrolet Zafira = 62 000 reais
TV de plasma de 42 polegadas = 7 000 reais
Linha de telefone (instalação) = 90 reais
Celular =
500 reais
iPod = 1 400 reais
Computador = 2 000 reais
DVD = 300 reais

TOTAL = 73 290 reais

Tempo de trabalho necessário para comprar esses produtos = 13 meses e 15 dias**

** Conta feita com base no salário médio dos chefes de família da classe média alta, segundo estudo do economista Waldir Quadros (Unicamp)

Com reportagem de Gabriela Carelli,
Cintia Borsato e Renato Piccinin


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