Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 16, 2006

Roberto Pompeu de Toledo

Morrer ou não morrer?
Eis a questão

Cenários de como seria o mundo, a partir
de uma
premissa de Salvador Dalí

Todo o problema, para Salvador Dalí, tinha origem em Júlio Verne. A tese foi desenvolvida numa entrevista da década de 60 à jornalista Yvette Romi, da revista francesa Le Nouvel Observateur, e seguia esta linha de raciocínio:

"Por causa de Júlio Verne, estamos condenados a morrer como insetos. Verne queria conquistar o espaço e ir à Lua. Para quê? Não há nada a ganhar nos outros planetas. Em lugar de desperdiçar energias em conquistar o espaço, o esforço científico devia se voltar para o código genético, a hibernação. Descobrir um meio de não morrer. Importante é ressuscitar, não ir à Lua. Portanto, cada vez que alguém morre, é por causa de Júlio Verne".

Dalí tinha 62 anos na época da entrevista. A corrida espacial vivia seu momento mais acentuado, e fazia parte da guerra fria entre as duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética. Dalí era meio extravagante, como se sabe, e, mais ainda do que ser, gostava de parecer extravagante, mas reconheça-se que tinha um ponto: a ciência, então como agora, realmente não concentra seu foco na questão da imortalidade. A medicina faz avanços e prolonga a vida, mas da imortalidade propriamente dita não cogita. Digamos porém que cogitasse. E digamos que o desejo expresso pelo artista catalão tivesse boas chances de realizar-se. Alguns pontos, ocultos no raciocínio do pintor, precisam ser esclarecidos, para que imaginemos como seria o mundo uma vez instaurada a imortalidade.

Em primeiro lugar: revogada a morte, seriam também revogados os nascimentos? Hipótese um: não. Os nascimentos continuariam a ocorrer. Ao fim deste ano de 2006, 140 milhões de bebês terão nascido no mundo. Suponhamos que a imortalidade entre em vigor desde já. Nenhum desses 140 milhões morrerá. E também nenhum dos 140 milhões que nascerão nos anos seguintes, supondo, num cálculo conservador, que a média permaneça a mesma. Ao fim de dez anos, em 2016, 1,4 bilhão de pessoas se acrescentarão à atual população mundial de 6,6 bilhões. Ou seja: seremos 8 bilhões. As presentes previsões, feitas com base num mundo em que ainda se morre, é que esses 8 bilhões só seriam atingidos em 2026. Com o banimento da morte, chegaremos a eles dez anos antes. Em 2050, sem mortes, mas com nascimentos, saltaremos para mais de 12 bilhões, quase o dobro do que somos neste 2006 – e basta de números. Já deu para comprovar o que estava claro desde o início: o mundo conheceria uma crise de superpopulação de proporções avassaladoras.

Não haveria alimento nem moradia, muito menos trabalho para tanta gente. E logo também começaria a escassear o espaço, depois de as populações terem se instalado em cada floresta disponível, cada ilha, cada deserto. O planeta ficaria apertado como ônibus na hora do rush, com gente pendurada nas bordas. Uns se voltariam contra os outros. Os melhores cérebros seriam convocados para descobrir algum meio de retomar as guerras, em desuso desde que a ausência da morte as tornou impraticáveis. Enfim, povos e governos se engajariam num clamor contínuo e desesperado para que a morte fosse restabelecida (dos outros, de preferência). O colapso seria inevitável. A menos que... A menos que o sonho de Júlio Verne fosse desengavetado e, em regime de urgência, se retomasse a exploração do espaço, com o objetivo de encontrar planetas onde alojar os excedentes da superlotada Terra.

Já se vê que, considerada a hipótese um, a tese de Dalí descreve uma parábola de boomerang e acaba por voltar-se contra si mesma. Hipótese dois: os nascimentos também seriam suspensos. É o mais lógico. Uma vez que o ciclo biológico foi interrompido numa ponta, que o seja também na outra. Os habitantes da Terra tratariam de encontrar um modo de convivência uns com os outros, e cada um com o vizinho chato, o colega ciumento e o parente intratável, pois estaríamos condenados a tolerar uns aos outros pela eternidade afora. Não haveria morte mas também não haveria renovação, nem uma única e escassa cara nova despontaria no planeta, o que tende a conduzir a um tédio asfixiante, mas, vá lá, a ausência de morte compensa.

Põe-se uma questão, porém: suspensos os nascimentos, estaria igualmente suspenso o sexo? É justo pensar que sim. Por um tempo, talvez ainda permanecesse a prática do sexo por diversão. Mas, considerando-se que a continuidade das espécies, a lei primeira dos seres vivos, teria perdido a razão de ser, é de prever que os mecanismos pelos quais se processa tal continuidade tenderiam ao declínio e ao definhamento. Pela lógica da evolução, teria lugar a atrofia dos órgãos reprodutores. Mais um pouco, e é de imaginar que desaparecessem também as diferenças entre homem e mulher, irmanados ambos os antigos gêneros numa consistência próxima à dos anjos. Eis aonde nos levou a tese de Dalí: um gambito pelo qual trocamos a imortalidade pela renúncia ao sexo. Vale a pena? O(a) leitor(a) está convocado(a) a se dedicar a pensar no assunto. No fim de ano, tempo de festas e de férias, sempre se arranja um tempinho.

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