Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, dezembro 15, 2006

O Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell

Jogos perigosos

Paixões violentas e narrativa impecável: este é
O Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell


Moacyr Scliar


EXCLUSIVO ON-LINE
Trechos do livro
O Quarteto de Alexandria
Justine
Balthazar
Mountolive
Clea

Anos atrás, fui apresentado a um jovem empresário que vinha do Egito, mais precisamente da cidade de Alexandria. Perguntei se ele conhecia O Quarteto de Alexandria (tradução de Daniel Pellizzari; Ediouro; 955 páginas; 170 reais). "Acho que eles não tocam mais lá", foi a intrigada resposta. O equívoco só é desculpável pelo fato de que a memória cultural costuma ser irremediavelmente curta. Nos anos 60 e 70, qualquer pessoa razoavelmente bem informada saberia que O Quarteto de Alexandria designa um grupo de quatro romances magistrais do inglês Lawrence Durrell, que marcaram profundamente a ficção da época. Felizmente, há esperança de remediar a amnésia literária: o Quarteto, que só era conhecido no Brasil por meio de uma edição portuguesa, acaba de ganhar sua primeira e competente tradução brasileira.

O romancista, poeta, dramaturgo e ensaísta Lawrence George Durrell (1912-1990) foi um inglês nascido na Índia colonial, tal como George Orwell. Ao contrário do socialista Orwell, ele era indiferente à política. No seu tratamento de paixões extremadas, Durrell guarda afinidade com o americano Henry Miller (ainda que seja menos direto do que Miller em matéria de sexo). Durante a II Guerra Mundial, Durrell trabalhou para a embaixada britânica de Alexandria, no Egito. Ali encontrou Yvette Cohen, que seria sua mulher – e que foi o modelo para a personagem que dá título a Justine, primeiro romance da tetralogia, publicado em 1957. Seguiram-se Balthazar (1958), Mountolive (1959) e Clea (1960). O Quarteto conjuga numerosas influências, da filosofia budista – com a qual Durrell se familiarizou na Índia – às idéias de Freud e Einstein. Mas a obra é sobretudo, nas palavras do próprio autor, uma "investigação do amor moderno", expressão que abrange uma vasta gama de situações: homossexualismo, bissexualismo, estupro, incesto. Não por acaso, o título do primeiro volume, Justine, alude à obra do Marquês de Sade.

A ação transcorre durante a II Guerra Mundial e nos anos que a precedem. Alexandria é mais que um cenário: a cosmopolita cidade funciona quase como personagem, um lugar de beleza, mistério – e também de miséria. Do ponto de vista estilístico, a grande inovação de Durrell é o jogo com o foco narrativo. Os três primeiros livros narram basicamente a mesma história, remontada e revista a partir de diferentes pontos de vista. No primeiro livro, o protagonista e narrador é Darley, jovem candidato a escritor que tem um duplo caso: com a bela e fogosa Justine, uma judia casada com o rico negociante copta Nessim, e com Melissa, dançarina de cabaré. A ligação entre Justine e seu amante é um jogo narcísico, uma paixão perigosa que só pode acabar em desastre. Nos dois livros seguintes, a história é iluminada com a perspectiva de outros personagens – o médico e cabalista Balthazar e David Mountolive, o influente embaixador britânico no Egito. Clea funciona como uma espécie de síntese, na qual os aspectos obscuros dos romances anteriores são esclarecidos quando Darley retorna a Alexandria depois de anos isolado em uma ilha. Os detratores acusavam essa elaborada seqüência ficcional de pedantismo, de obscuridade e até de "alienação" política. Mas o fato é que, com uma exímia técnica narrativa, Lawrence Durrell retratou as paixões mais violentas de uma forma que ainda hoje conserva sua provocante originalidade. Seus leitores poderão constatar que o Quarteto continua tocando em Alexandria.

CONVERSA DE HOMEM

"Ruas que escapam das docas com suas casas arruinadas e decrépitas, grudadas umas às outras, soçobrando. Sacadas com persianas fechadas, cheias de ratos. Cheiro de berberes empapados de suor. (...) Quisera eu ser capaz de mimetizar a autoconfiança resoluta com que Justine abria caminho por essas ruas na direção do café onde eu estava à sua espera: El Bab. Nossas conversas já estavam impregnadas de subentendidos que considerávamos o bom presságio de uma simples amizade. Justine falava como um homem, e eu falava com ela como a um homem."

Trecho de Justine

Leia trecho do livro O Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell

Justine

Não era nada desprezível o sucesso que vinha obtendo com seus coquetéis cautelosamente graduados — nos quais ocasionalmente incluía convidados saídos das esferas mais humildes da vida, como a prostituição e as artes. Seus gastos e o tédio das festas, porém, eram excruciantes, e lembro que certa vez ele me explicou, em tom de lamento, a origem desses eventos: "Coquetéis foram inventados por cães. Não passam do velho costume de farejar o traseiro alheio elevado à categoria de cerimônia formal." Ainda assim, levou os coquetéis adiante e foi recompensado com a boa vontade de seu cônsul-geral, que, apesar de todo o desprezo, ainda lhe inspirava certa admiração infantil. Chegou mesmo a convencer Justine, depois de muita insistência cômica, a aparecer num desses eventos para avançar seus planos de condecoração. Isso nos forneceu uma chance de analisar Pordre e o pequeno círculo diplomático de Alexandria — em sua maior parte, pessoas que davam a impressão de ter sido pintadas com aerógrafo, de tão pálidas e difusas que suas personalidades oficiais me pareciam.

O próprio Pordre era marcadamente excêntrico. Nascera para fazer a alegria dos caricaturistas. Tinha um rosto comprido e pálido, arruinado, enfatizado por uma magnífica cabeleira prateada que exibia com orgulho. Possuía, contudo, o semblante de um lacaio. A falsidade de seus gestos (sua solicitude exagerada, a intimidade que demonstrava com meros conhecidos) era terrívelmente incômoda e permitiu que eu compreendesse tanto o lema que meu amigo compôs para o Ministério das Relações Exteriores francês quanto o epitáfio que, sugeriu, deveria ser gravado na lápide de seu chefe ("Sua mediocridade foi sua salvação"). De fato, sua personalidade era tão delgada quanto uma folha de ouro — escondia-se por trás do verniz de cultura que os diplomatas, mais do que ninguém, têm condições de adquirir.

Depois do sucesso da festa, um convite de Nessim para jantar inspirou no diplomata arroubos de satisfação que nada tinham de fingidos. Todos sabiam que o rei era um convidado freqüente à mesa de Nessim, e o velho já começava a redigir mentalmente um relatório que começava com as seguintes palavras: "Na última semana, jantando com o rei, coloquei em pauta o assunto... Então o rei disse... Ao que respondi..." Seus lábios começaram a mover-se, seus olhos a perder o foco. Entrava num de seus notórios transes públicos, dos quais despertava de repente, com um sorriso constrangido, para espanto de seus interlocutores.

De minha parte, achei estranho voltar ao minúsculo apartamento onde passara quase dois anos de minha vida; lembrar que tinha sido ali, naquela mesma sala, que conhecera Melissa. O apartamento sofrera uma grande transformação nas mãos da última amante de Pombal. Sua insistência resultou em painéis de madeira de um branco quase cinzento e frisos marrons. As velhas poltronas, cujo estofamento costumava escapar do tecido rasgado, haviam sido reformadas com um material grosso, lustroso e decorado com um padrão de flor-de-lis. Os três sofás antigos haviam desaparecido, para aumentar o espaço. Sem dúvida tinham sido vendidos ou destruídos. "Em algum lugar", pensei, citando um poema do velho poeta, "em algum lugar seguem vivendo aquelas velharias". Como a memória é rancorosa, como se agarra de forma amarga à matéria-prima de seu trabalho cotidiano.

Outrora espartano, o quarto de dormir de Pombal tornara-se vagamente fin de siécle e brilhava de tão limpo. Oscar Wilde seria capaz de escolhê-lo como cenário para o primeiro ato de alguma de suas peças. Meu quartinho voltara a ser um pequeno depósito, mas a cama continuava no mesmo lugar, encostada na parede ao lado da pia de ferro. Naturalmente, a cortina amarela desaparecera e fora substituída por um tecido branco e sem graça. Coloquei a mão na cabeceira enferrujada de minha velha cama e senti uma pontada no coração ao lembrar dos olhos cândidos de Melissa encarando-me na meia-luz daquele cubículo. Fiquei envergonhado e surpreso com meu pesar. E quando, às minhas costas, Justine entrou no quarto, fechei a porta com um pontapé e na mesma hora comecei a beijar seu lábios, seus cabelos e sua fronte, apertando-a em meus braços até quase roubar-lhe o fôlego, para que não percebesse as lágrimas em meus olhos.

Balthazar

Já havia escurecido quando dispensei o táxi na praça Mohammed Ali e caminhei até o departamento da Prefeitura onde fi cava o gabinete de Nimrod. Ainda estava atônito com o rumo tomado pelos acontecimentos e oprimido com a idéia dos possíveis desdobramentos — reforçando as advertências e ameaças dos últimos meses, nos quais eu vivera unicamente para uma pessoa — Justine. Ardia de impaciência por revê-la.

As lojas já estavam iluminadas e os balcões dos cambistas estavam cercados de marinheiros franceses impacientes por trocar seus francos por comida e vinho, seda, mulheres, rapazes ou ópio — toda sorte de descuido compreensível. O gabinete de Nimrod fi cava nos fundos de um edifício antigo, ao fim da rua. Parecia deserto àquela hora, cheio de corredores vazios e gabinetes abertos. Todos os funcionários haviam saído às seis, quando termina o expediente. Meus passos arrastados ecoaram pela portaria abandonada. Era estranho ingressar num prédio da polícia de forma tão desimpedida. Ao final do terceiro corredor cheguei à porta de Nimrod e bati. Ouviam-se vozes em seu interior. Seu gabinete era uma sala ampla, até majestosa, com janelas que davam para um pátio vazio onde algumas galinhas passavam o dia inteiro cacarejando e ciscando no chão de terra. Uma palmeira solitária e ressecada erguia-se no meio do pátio, proporcionando alguma sombra no verão.

Como ninguém respondeu, abri a porta e entrei — e detive-me em seguida; a escuridão e a luz brilhante fizeram-me pensar que um filme estava sendo exibido. Mas era apenas o imenso epidiascópio projetando na parede as imagens ampliadas das fotografias que Nimrod retirava de um envelope. Ofuscado, entrei na sala e identifiquei Balthazar e Keats na penumbra fosforescente que rodeava a máquina, seus perfis recortados na luz magnética da poderosa lâmpada.

— Ótimo — disse Nimrod, virando a cabeça e estendendo-me uma cadeira —, sente-se. — Keats sorriu para mim, parecendo empolgado e cheio de uma satisfação misteriosa. As fotografias que estudavam com tanto cuidado haviam sido tiradas por ele no baile dos Cervoni. Tão ampliadas, pareciam afrescos distorcidos que se materializavam e desapareciam na parede branca. — Veja se pode ajudar-nos com a identificação — pediu Nimrod, ao que me sentei e, obediente, voltei o rosto para as imagens brilhantes das silhuetas de dezenas de monges dementes, dançando juntos.

— Essa não — disse Keats. A luz branca do magnésio ateara fogo aos contornos das figuras encapuzadas.

Dilatadas até aquele tamanho enorme, as fotografias pareciam uma nova forma de arte, mais macabras que qualquer fruto da imaginação de um Goya. Uma nova iconografia — pintada com fumaça e clarões de flash. Nimrod trocava as imagens sem pressa, demorando-se em cada uma delas.

— Nenhum comentário? — perguntava antes de expor perante nossos olhos mais um fac-símile ampliado da vida real. — Nenhum comentário?

Para fins de identificação, eram inúteis. Oito fotografias, no total — cada uma delas um terrível simulacro de uma festa mórbida celebrada por sátiros vestidos de monges em alguma cripta medieval, orientados por Sade!

— Ali está o anel — alertou Balthazar assim que a quinta fotografia surgiu na parede. Um grupo de vultos encapuzados, agitando-se freneticamente com os braços dados, surgiu diante de nós, inexpressivos como sépias ou os monstros grotescos que por vezes nos espreitam em meio à escuridão dos aquários. Seus olhos eram fendas desprovidas de sentido, sua alegria um arremedo de emoções humanas. Então é assim que os inquisidores se divertem em suas horas de folga! Keats suspirou, desesperado. Um dos vultos tinha a mão pousada sobre o braço coberto de negro do vizinho. Um pequeno borrão branco indicava o trágico anel de Justine. Nimrod descreveu toda a cena para si mesmo com o tom de um homem que faz uma medição.

— Cinco mascarados... algum lugar perto do bufê, enxerga-se o canto... e a mão. Pertence a Toto de Brunel? Que acham? — Olhei com atenção.

— Creio que é possível — opinei. — Justine usa esse anel em outro dedo. Nimrod, triunfante, exclamou:

— Rá! — e acrescentou — Aí está um detalhe importante. — Sim, mas quem seriam os outros vultos que o flash arrancara do nada? Examinávamos com atenção, recebendo em troca o olhar vazio de suas fendas aveludadas. Pareciam atiradores de elite.

— Não adianta — suspirou Balthazar, e Nimrod desligou a máquina. Após um instante de completa escuridão a sala foi iluminada por uma lâmpada elétrica comum. A mesa de Nimrod estava coberta de páginas datilografadas à espera de assinaturas, o procès-verbal, sem dúvida. Sobre um quadrado de seda cinzenta, repousavam objetos diretamente relacionados com o que nos angustiava: o alfinete maciço, com sua horrenda pedra azul e o anel ebúrneo de minha amante, que nem mesmo então eu conseguia encarar sem sentir um aperto no peito.

— Assine aqui, por favor — pediu Nimrod, indicando uma página —, depois de ler. — Cobriu a boca para tossir e acrescentou em voz baixa: — E pode levar o anel.

Balthazar estendeu-me o anel. Estava frio, coberto por uma ligeira camada de pó para impressões digitais. Limpei o anel na gravata e guardei-o em meu casaco, no bolso do relógio.

— Obrigado — falei, e sentei-me diante da mesa para ler o relatório policial, enquanto os outros acendiam cigarros e conversavam em voz baixa. Ao lado das páginas datilografadas havia outra, escrita na caligrafia genérica e nervosa do general Cervoni. Era a lista de convidados para o baile de Carnaval, que ecoava a poesia majestosa dos nomes que tanto vieram a significar para mim, os nomes dos alexandrinos. Escute:

Pia dei Tolomei, Benedict Dangeau, Dante Borromeo, coronel Neguib, Toto de Brunel, Wilmot Pierrefeu, Mehmet Adm, Pozzo di Borgo, Ahmed Hassan Paxá, Delphine de Francueil, Djambulat Bey, Athena Trasha, Haddad Fahmy Amin, Gaston Phipps, Pierre Balbz, Jacques de Guéry, conde Banubula, Onofrios Papas, Dmitri Randidi, Paul Capodistria, Claude Amaril, Nessim Hosnani, Tony Umbada, Baldassaro Trivizani, Gilda Ambron...

Murmurei os nomes durante a leitura da lista, adicionando mentalmente a palavra "assassino" a cada um deles, apenas para ver se parecia encaixar. Somente quando cheguei ao nome de Nessim fiz uma pausa e olhei para a parede escura — para nela projetar sua imagem como se fosse mais uma fotografia a ser analisada. Ainda enxergava a expressão em seu rosto no momento em que o ajudei a entrar no carro — o rosto sereno e malicioso de alguém que descansa após ter gasto uma imensa dose de energia.

Mountolive

Com as primeiras pancadas leves da chuva de inverno, Mountolive viu-se novamente no Cairo sem ter tomado nenhuma decisão de importância capital no campo da política; Londres manteve silêncio sobre as revelações contidas na carta de despedida de Pursewarden e, ao que parecia, julgara mais importante enviar condolências a um embaixador cujos subordinados pareciam de valor duvidoso do que criticá-lo ou dar início a uma investigação mais aprofundada. Esse sentimento talvez tenha sido mais bem expresso na carta longa e pomposa enviada por Kenilworth a respeito da tragédia, garantindo que todos "no ministério" estavam tristes, mas não surpresos. Pursewarden sempre havia sido considerado um tanto outré, não? De certo modo, seu fim era esperado. "Seus encantos pessoais", escreveu Kenilworth na prosa imponente reservada para o que se conhecia como "análise equilibrada", "não eram suficientes para encobrir suas aberrações. Não vejo motivos para referir-me ao arquivo pessoal que mostrei a Vossa Excelência. In Pace Requiescat. Mas Vossa Excelência conta com nossa simpatia em virtude da lealdade exibida ao repudiar essas considerações para conceder-lhe outra chance em uma missão que já havia considerado insuportáveis seus modos e indesejáveis suas opiniões". — Mountolive contorcia-se ao ler aquilo; mas sua repugnância mesclava-se de forma irracional a uma impressão de alívio, pois via ocultas por trás dessas deliberações as sombras, por assim dizer, de Nessim e Justine, os proscritos.

Se deixava Alexandria com relutância, era apenas porque continuava aborrecido com o problema de Leila. Temia as novas perspectivas sob as quais era forçado a encará-la, levando em conta sua possível participação naquele conluio — se é que havia —, e sofria como um criminoso atormentado pela culpa de um crime ainda não descoberto. Não seria melhor forçá-la a recebê-lo — chegar sem aviso em Karm Abu Girg e arrancar dela a verdade? Nunca conseguiria. Nesse ponto, faltava-lhe coragem. Desviou a mente do futuro incerto e arrumou as malas entre suspiros, planejando mergulhar novamente na corrente tépida das atividades sociais para distrair a mente.

Pela primeira vez, os percalços de seus deveres oficiais pareciam quase encantadores, quase sedutores. Matavam tempo e serviam como analgésicos. Mountolive seguia concentrado e atento a receita prescrita de distrações, que ganhavam uma qualidade quase narcótica. Nunca irradiara um charme tão calculado, uma atenção tão minuciosa às ninharias que garantiam o sucesso em sociedade. Começou a ser cercado por toda uma colônia de tipos muito aborrecidos. Não demorou para que as pessoas começassem a notar como ele havia envelhecido em pouco tempo, e atribuíam esse fato à roda-viva de prazer na qual ele se lançara com tamanho entusiasmo. Que ironia! Sua popularidade aumentava em ondas. Começava, porém, a sentir por trás da máscara indolente que expunha aos olhos do mundo um medo e uma incerteza completamente inéditos. Separado de Leila daquela forma, sentia-se alijado, órfão. Restava-lhe apenas a droga amarga dos deveres profissionais, à qual se agarrou em desespero.

Acordava de manhã com o som das cortinas sendo abertas pelo mordomo

— com uma reverência vagarosa, como se abrisse as cortinas da tumba de Julieta —, pedia os jornais e lia-os com avidez, enquanto devorava o conteúdo da bandeja do café-da-manhã, repleta das delícias às quais a vida lhe acostumara. A essa altura já estava impaciente por ouvir as batidas na porta que anunciavam a chegada de seu terceiro-secretário, jovem e barbado, trazendo a agenda e outros apetrechos de trabalho. Sempre torcia para ter à sua frente um dia repleto de atividades, e angustiava-se nas raras ocasiões em que tinha poucos compromissos. Reclinava-se nos travesseiros, controlando a impaciência, enquanto Donkin recitava a agenda do dia com o ar solene de alguém lendo o Credo. Esses compromissos oficiais, por mais inócuos que fossem, soavam como música ao ouvido de Mountolive, uma receita contra o tédio e a inquietude. Ouvia com ansiedade e volúpia as recitações: "Às onze, uma visita a Rahad Paxá para entregar um aide-mémoire sobre investimentos de súditos britânicos. A chancelaria tem as informações. Então, sir John e lady Gilliatt virão para o almoço. Errol recebeu-os no aeroporto. Sim, enviamos as fl ores ao hotel. Assinarão o livro hoje, às onze. Sua filha está indisposta, o que causou alguns transtornos no arranjo da mesa; mas como Haida Paxá e o ministro norte-americano já estavam convidados, tomei a liberdade de incluir Errol e esposa. Assim tudo funcionará a contento. Não preciso consultar o Protocolo, pois sir John está aqui em visita particular — como foi anunciado publicamente à imprensa.

Clea

Por um tempo considerável não tive notícias da irmã de Pursewarden, ainda que soubesse que ela continuava na Residência de Verão. Como as visitas de Mountolive eram registradas nos memorandos, eu sabia que ele vinha do Cairo a cada dez dias para passar a noite. Cheguei a esperar que ele entrasse em contato comigo, mas com o passar do tempo esqueci sua existência assim como ele parecia ter se esquecido da minha. Assim, foi inesperado escutar a voz de Liza no telefone do gabinete — uma surpresa num mundo onde as surpresas eram raras e bem-vindas. Era uma voz curiosa, desencarnada, com um quê de adolescente. Dizia: "Creio que sabe quem sou. Como era amigo de meu irmão, gostaria de conversar com você." Definiu como "particular, informal e íntimo" o convite para jantar na noite seguinte, o que me sugeriu que Mountolive estaria presente. Senti uma curiosidade incomum ao caminhar pela entrada comprida, com suas cercas-vivas tão inglesas, e cruzar o pequeno bosque de pinheiros que cercava a Residência de Verão. Era uma noite quente e serena — como as que prenunciam a formação de um cansim em algum ponto do deserto, que mais tarde rolaria suas nuvens de poeira pelas ruas e praças da cidade, como pilares de fumaça. Mas por ora o ar da noite estava seco e límpido.

Toquei a campainha duas vezes, sem resultado, e quando começava a imaginar que estava estragada, escutei passos ligeiros no lado de dentro. A porta abriu-se e ali estava Liza, com uma expressão triunfante e ávida no rosto cego. Achei-a extraordinariamente bela à primeira vista, embora fosse um pouco baixa demais. Usava um vestido feito de algum tecido escuro e macio, com um decote generoso, do qual brotava seu pescoço esguio e a cabeça, como a corola de uma flor. Ficou parada à minha frente, com a cabeça um pouco levantada e projetada para a frente — com um ar espectral de coragem — como se apresentasse seu adorável pescoço a um carrasco invisível. Quando falei meu nome, ela sorriu, assentiu com a cabeça e repetiu-o num sussurro tenso.

— Graças a Deus, enfim você veio — disse, como se tivesse passado anos à espera de minha visita! Quando dei um passo a frente, ela acrescentou às pressas: — Por favor, perdoe-me se... É minha única maneira de saber. — Então senti seus dedos macios e quentes em meu rosto, movendo-se com habilidade, decifrando minhas feições. Senti um desconforto curioso, composto de sensualidade e repulsa, enquanto aqueles dedos capazes passeavam por minha face e minha boca. Suas mãos eram pequenas e muito belas; os dedos passavam uma impressão de delicadeza extraordinária, pois pareciam curvar-se ligeiramente nas pontas para exibir suas extremidades brancas ao mundo, como se fossem antenas. Certa vez eu vira dedos semelhantes num pianista mundialmente famoso, tão sensíveis que pareciam ajustar-se às teclas quando ele tocava. Ela deixou escapar um discreto suspiro, como se estivesse aliviada, e segurando meu pulso conduziu-me pelo saguão até a sala de estar, com sua mobília oficial luxuosa e anódina. Mountolive estava de pé em frente à lareira, com um ar preocupado e desconfortável. Ouvia-se um rádio em volume muito baixo. Cumprimentamo-nos e em seu aperto de mão senti certa instabilidade, uma indecisão que combinava com a voz incerta ao pedir desculpas por seu longo silêncio:

— Precisei esperar Liza estar pronta — explicou, com um ar de mistério.

Mountolive mudara bastante, ainda que continuasse com as marcas da elegância superficial que era um pré-requisito de seu trabalho. Suas roupas haviam sido escolhidas meticulosamente — pois mesmo trajes informais (pensei, triste) são uma espécie de uniforme para os diplomatas. Sua antiga gentileza e seu ar atencioso permaneciam intactos. Mas ele havia envelhecido. Percebi que agora precisava de óculos de leitura, que repousavam sobre um exemplar do The Times ao lado do sofá. Deixara crescer um bigode que não aparava, transformando o formato de sua boca e acentuando a debilidade primorosa de suas feições. Não era possível imaginá-lo nas garras de uma paixão forte o bastante para abalar as atitudes ditadas por sua educação perfeita. Nem mesmo agora, olhando para ambos, conseguia dar crédito às suspeitas de Clea sobre o amor de Mountolive por aquela cega estranha, que me olhava do sofá com seus olhos vazios, mãos cruzadas sobre o colo — aquelas vorazes e insaciáveis mãos de musicista. Teria ela enroscado-se como uma odiosa serpente no cerne da vida tranqüila de Mountolive? Aceitei um drinque e, no calor de seu sorriso, lembrei que sempre tivera afeto e admiração por ele. Esses sentimentos permaneciam iguais.



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