Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, dezembro 21, 2006

O legado do casal Garotinho


Editorial
O Estado de S. Paulo
21/12/2006

O envolvimento de policiais civis e militares com o narcotráfico, o jogo do bicho e a máfia dos caça-níqueis há muito tempo faz parte dos usos e costumes no Rio de Janeiro, tendo até mesmo se convertido em tema de telenovela e de enredo de escola de samba. O que ainda não se sabia é que a promiscuidade nas relações entre quadrilhas e órgãos policiais, durante as duas gestões do casal Garotinho à frente do governo do Estado, chegou a ponto de dissolver as fronteiras entre o submundo do crime e o poder público.

Essa é a constatação que se pode fazer agora, depois da prisão, na última sexta-feira, de 80 agentes policiais acusados de manter ligações íntimas com quadrilhas ligadas a contraventores, contrabandistas e mafiosos. Realizada pela Polícia Federal (PF), a operação foi feita a partir de informações propiciadas por interceptações telefônicas realizadas durante sete meses, devidamente autorizadas pela Justiça. Entre os presos encontram-se delegados e altos oficiais da PM do Rio de Janeiro. O principal acusado, que só não foi detido por ter sido diplomado como deputado estadual um dia antes, é Álvaro Lins, que ocupou o mais alto cargo na hierarquia da Polícia Civil nas gestões de Anthony Garotinho e da governadora Rosinha Matheus.

O alvo inicial da “Operação Gladiator” eram os dois herdeiros dos pontos de jogo do antigo bicheiro Castor de Andrade, que durante anos travaram uma sangrenta guerra pela exploração de caça-níqueis, na qual morreram assassinadas mais de 50 pessoas. Com mais de 25 mil máquinas caça-níqueis espalhadas pela região metropolitana do Rio de Janeiro, uma das quadrilhas tinha um faturamento mensal de R$ 6 milhões.

Com o tempo, as gravações da PF revelaram que a disputa só acabou porque Lins e sua equipe não apenas passaram a vender “proteção” às duas quadrilhas, como também definiram as áreas em que elas podiam agir sem concorrência. Conforme sua posição hierárquica, cada policial envolvido no esquema ganhava propinas semanais que variavam entre R$ 200 e R$ 5 mil. As investigações também mostraram que os três inspetores mais próximos a Álvaro Lins teriam loteado quase todas as delegacias do Rio de Janeiro e das cidades praianas do Estado, controlando as nomeações de delegados e de agentes que, além da “proteção” dada às duas quadrilhas, tinham a incumbência de fazer a “segurança” de seus líderes, acompanhando-os a academias, restaurantes e boates.

O detalhe é que esse pessoal deveria estar na cadeia, uma vez que a Justiça já havia expedido mandado de prisão. Um dos poucos contraventores presos, Fernando Ignácio, genro de Castor de Andrade, até a última sexta-feira saía livremente da carceragem da Polinter para jantar com oficiais da PM e delegados de polícia num shopping da Barra da Tijuca e se dava ao luxo de receber seu contador diariamente em sua cela. Nessa acintosa diluição das fronteiras entre o submundo do crime e o poder público, no Rio de Janeiro, é impossível saber quem é o corrompido e quem é corruptor.

Com a descoberta de mais um esquema mafioso, o clã Garotinho encerra melancolicamente sua passagem pelo Palácio Guanabara. A rigor, o que ocorreu nos órgãos policiais do Estado não é muito diferente do que aconteceu com a passagem de outro homem de confiança do casal, Rodrigo Silveirinha, na máquina estadual. Subsecretário de Administração Tributária, onde chefiou a Inspetoria de Contribuintes de Grande Porte, ele está sendo processado criminalmente por ter coordenado, entre 1999 e 2002, a remessa a bancos suíços de US$ 33,4 milhões provenientes de extorsão, chantagem e fraude na arrecadação de ICMS.

O mínimo que se espera do próximo governador, que assumirá o cargo em 1º de janeiro, é uma faxina radical nos órgãos policiais do Rio de Janeiro. Além disso, é preciso mudar a lei que dá foro privilegiado a criminosos que se candidatam a um mandato legislativo apenas para assegurar a impunidade. Enquanto a imunidade parlamentar continuar sendo confundida com impunidade penal, evitar a corrosão do poder público pelo poder corruptor do crime organizado é um desafio difícil de ser vencido.

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