No extraordinário O Labirinto do Fauno, uma
menina entra nos subterrâneos da imaginação
– e encontra a chave para vencer o fascismo
Isabela Boscov
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O diretor mexicano Guillermo del Toro, de 42 anos, diz que tem atravessado a vida tentando se recuperar dos primeiros dez – passados em companhia de uma avó fanática religiosa (que advogava inclusive a mortificação da carne) e de outras criaturas monstruosas (estas produto de sua imaginação). Pois Del Toro que perdoe o egoísmo: fazem-se aqui votos de que ele não consiga espantar seus fantasmas, os quais serviram de matéria-prima a vários filmes interessantes, como Cronos, A Espinha do Diabo e Hellboy, e agora a um trabalho verdadeiramente extraordinário. Em O Labirinto do Fauno (El Laberinto del Fauno, México/Espanha/Estados Unidos, 2006), desde sexta-feira em cartaz no país, a menina Ofelia (Ivana Baquero), de 11 anos, é levada para dentro da toca do lobo: um posto avançado do Exército do caudilho Francisco Franco, no norte da Espanha, onde um capitão assassino (Sergi López, exalando ameaça) tenta esmagar focos de resistência republicana. O capitão acabou de se casar com a mãe de Ofelia e já produziu nela um herdeiro. O que está dentro de sua mãe é, para Ofelia, um mistério. Pode ser alguém como ela própria – um inocente – ou então alguém como o padrasto.
Rodeada de medo e brutalidade, a garota acha uma saída. Adentra um labirinto, nos fundos da propriedade, e então se vê num mundo subterrâneo, encenado em cores e detalhes tão vívidos que, desde o início, ele é que parece ser o mais real. Lá, um fauno antiqüíssimo informa Ofelia de que ela é a princesa desse reino. Se cumprir três tarefas, poderá retornar a ele. As tarefas seguem as regras clássicas dos contos de fadas, com sapos, portas misteriosas, chaves e proibições – como a de nunca, jamais, provar de algum alimento quando se está numa dimensão mágica. (Regra que Ofelia, aliás, quebra, despertando um homem pálido, com olhos na palma das mãos, onde ficam os estigmas de Cristo.) Del Toro conhece as convenções dos contos de fadas de trás para a frente, e devolve a elas seu sentido tradicional: o de códigos que servem para ao mesmo tempo simplificar e codificar os grandes temores da existência. De posse deles, Ofelia consegue lidar com a realidade esmagadora à sua volta. Mais: consegue dominá-la. Del Toro sabe que o fascismo não tem inimigos piores do que a pureza e a imaginação – "a mais desobediente das qualidades", como definiu o diretor em entrevista a VEJA. Ofelia possui ambas as coisas, e por causa delas se transformará num adversário formidável para o padrasto.
O Labirinto é desses casos únicos em que a narrativa e a alegoria não só convivem bem como multiplicam o efeito uma da outra. O mundo da imaginação de Ofelia é poderoso em si mesmo, porque Del Toro acredita nos símbolos que está usando e na força que eles contêm. E é igualmente eficiente como representação do século singular que a Espanha atravessou. Ofelia rouba o irmão recém-nascido e permite, assim, que ele venha a crescer sem saber o nome nefasto de seu pai. É a Espanha da resistência dando à luz a Espanha inquieta e criativa que ressurgiu dos subterrâneos com o fim da ditadura franquista. Mais do que qualquer outra coisa, porém, O Labirinto é uma promessa – de um diretor original, que dá indícios de conter outros tantos filmes magníficos dentro de si.