Os contos de Isaac Bábel são um
retrato sem retoques da barbárie russa
Jerônimo Teixeira
Em um lugarejo recém-conquistado, um grupo de soldados se instala na casa de uma camponesa idosa. O militar judeu que chega à mesma casa é visto com desprezo pelos demais – o sujeito usa óculos, prova de alguma grave falha de caráter. Isolado de seus companheiros de armas, ele afinal encontra um modo de provar seu valor: mata um ganso criado pela dona da casa e ordena que a velha asse a ave para ele. Só então os soldados o convidam para se integrar ao grupo. A morte do pobre ganso é uma violência mínima em meio aos 36 contos de O Exército de Cavalaria (tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade; Cosac Naify; 256 páginas; 55 reais), clássico de Isaac Bábel (1894-1940) que ganha agora sua primeira tradução direta do russo. Narrando episódios da guerra russo-polonesa, um dos conflitos que se seguiram à revolução comunista de 1917, a obra está repleta de batalhas, saques, execuções, estupros, eviscerações. A morte do ganso, porém, funciona como uma iniciação em um mundo no qual só a brutalidade compra o respeito.
Os soldados que tanto admiram a matança de gansos e poloneses são cossacos, uma espécie de versão russa dos gaúchos dos pampas brasileiros e argentinos: cavaleiros rústicos, brutos, desconfiados de toda forma de civilização. No tempo dos czares, eram ferozes defensores da integridade territorial da mãe Rússia. Também costumavam atuar nos pogroms – matanças em aldeias judaicas. Nas guerras civis que se seguiram à revolução de 1917, alguns cossacos integraram-se ao Exército Vermelho, enquanto outros combateram ao lado dos brancos. No que parece quase uma inverossimilhança histórica, Bábel, filho de um comerciante judeu de Odessa, na Ucrânia, e atento leitor de Maupassant, serviu ao lado dos grosseiros cossacos na Cavalaria Vermelha. Foi dessa experiência que surgiram os contos de O Exército de Cavalaria.
Bábel, apesar de comunista convicto, não submeteu sua literatura ao cabresto do partido. Seus personagens às vezes fazem apaixonadas profissões de fé socialistas – um deles chega a dizer que até as abelhas vão se beneficiar com a vitória da revolução –, mas O Exército de Cavalaria não acena com nenhuma redenção. A guerra de cima de um cavalo: eis a utopia dos cossacos. A violência do livro é exacerbada pela casualidade gélida com que as piores atrocidades são narradas. As metáforas de gosto expressionista cultivadas por Bábel só acentuam o terror – em que outro livro o sol poderia se parecer com uma cabeça decepada? Alter ego do autor, o judeu Liútov, narrador da maior parte dos contos, talvez reprove silenciosamente os modos toscos dos cossacos. Mas é claro que ele também admira a coragem e a virilidade brutal desses cavaleiros. É um escritor, um homem supostamente civilizado, que se deixa fascinar pela barbárie. O modo de vida cossaco, ironicamente, perdeu seu lugar com a industrialização da União Soviética. Uma nova barbárie estatizou-se sob o comunismo. E Bábel acabou fuzilado pelo regime de Stalin, em 1940.
O degolador delicado
"Alguns cossacos iam fuzilar por espionagem um velho judeu de barba prateada. O velho gritava e se debatia. Então Kúdria agarrou-lhe a cabeça e segurou-a com a axila. Tirou o punhal e degolou o velho com cuidado, para não se manchar de sangue. Depois, bateu numa janela fechada."
– Quem quiser, venha apanhá-lo – disse. – Não é proibido.
Trecho do conto Berestietchko
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