Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 09, 2006

O Exército de Cavalaria, de Isaac Bábel

A utopia dos cossacos

Os contos de Isaac Bábel são um
retrato sem retoques da barbárie russa


Jerônimo Teixeira


Em um lugarejo recém-conquistado, um grupo de soldados se instala na casa de uma camponesa idosa. O militar judeu que chega à mesma casa é visto com desprezo pelos demais – o sujeito usa óculos, prova de alguma grave falha de caráter. Isolado de seus companheiros de armas, ele afinal encontra um modo de provar seu valor: mata um ganso criado pela dona da casa e ordena que a velha asse a ave para ele. Só então os soldados o convidam para se integrar ao grupo. A morte do pobre ganso é uma violência mínima em meio aos 36 contos de O Exército de Cavalaria (tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade; Cosac Naify; 256 páginas; 55 reais), clássico de Isaac Bábel (1894-1940) que ganha agora sua primeira tradução direta do russo. Narrando episódios da guerra russo-polonesa, um dos conflitos que se seguiram à revolução comunista de 1917, a obra está repleta de batalhas, saques, execuções, estupros, eviscerações. A morte do ganso, porém, funciona como uma iniciação em um mundo no qual só a brutalidade compra o respeito.

Os soldados que tanto admiram a matança de gansos e poloneses são cossacos, uma espécie de versão russa dos gaúchos dos pampas brasileiros e argentinos: cavaleiros rústicos, brutos, desconfiados de toda forma de civilização. No tempo dos czares, eram ferozes defensores da integridade territorial da mãe Rússia. Também costumavam atuar nos pogroms – matanças em aldeias judaicas. Nas guerras civis que se seguiram à revolução de 1917, alguns cossacos integraram-se ao Exército Vermelho, enquanto outros combateram ao lado dos brancos. No que parece quase uma inverossimilhança histórica, Bábel, filho de um comerciante judeu de Odessa, na Ucrânia, e atento leitor de Maupassant, serviu ao lado dos grosseiros cossacos na Cavalaria Vermelha. Foi dessa experiência que surgiram os contos de O Exército de Cavalaria.

Bábel, apesar de comunista convicto, não submeteu sua literatura ao cabresto do partido. Seus personagens às vezes fazem apaixonadas profissões de fé socialistas – um deles chega a dizer que até as abelhas vão se beneficiar com a vitória da revolução –, mas O Exército de Cavalaria não acena com nenhuma redenção. A guerra de cima de um cavalo: eis a utopia dos cossacos. A violência do livro é exacerbada pela casualidade gélida com que as piores atrocidades são narradas. As metáforas de gosto expressionista cultivadas por Bábel só acentuam o terror – em que outro livro o sol poderia se parecer com uma cabeça decepada? Alter ego do autor, o judeu Liútov, narrador da maior parte dos contos, talvez reprove silenciosamente os modos toscos dos cossacos. Mas é claro que ele também admira a coragem e a virilidade brutal desses cavaleiros. É um escritor, um homem supostamente civilizado, que se deixa fascinar pela barbárie. O modo de vida cossaco, ironicamente, perdeu seu lugar com a industrialização da União Soviética. Uma nova barbárie estatizou-se sob o comunismo. E Bábel acabou fuzilado pelo regime de Stalin, em 1940.

O degolador delicado

"Alguns cossacos iam fuzilar por espionagem um velho judeu de barba prateada. O velho gritava e se debatia. Então Kúdria agarrou-lhe a cabeça e segurou-a com a axila. Tirou o punhal e degolou o velho com cuidado, para não se manchar de sangue. Depois, bateu numa janela fechada."

– Quem quiser, venha apanhá-lo – disse. – Não é proibido.

Trecho do conto Berestietchko


Leia trecho do livro O Exército de Cavalaria, Isaac Bábel

"O sol da Itália"

Estive ontem mais uma vez no quarto de empregados ocupado por pani Eliza, aquecendo-me ao fogo de uma coroa de ramos verdes de abeto. Permaneci sentado ali, perto da estufa tépida,

viva, resmungona, e era noite alta quando voltei para casa. No fundo do barranco, o silencioso Zbrutch rolava suas escuras águas de vidro.

A cidade incendiada – colunas quebradas e ganchos cravados no chão, iguais aos mindinhos de velhas malvadas – parecia suspensa no ar, conveniente e inaudita como num sonho. O brilho

nu da lua derramava-se sobre ela com uma força inesgotável. O musgo úmido dos escombros florescia feito o mármore de uma frisa de teatro. E, com o espírito perturbado, eu esperava a saída de um Romeu por entre as nuvens, um Romeu vestido de cetim, cantando o amor, enquanto, nos bastidores, um eletricista deprimido mantém o dedo no interruptor da lua.

Caminhos azuis fluíam à minha frente, qual rios de leite jorrando de muitos peitos. Na volta para casa, temia encontrar meu vizinho Sídorov, que toda noite pousava em mim a pata

peluda de sua tristeza. Felizmente, naquela noite devastada pelo leite da lua, Sídorov não disse palavra. Cercado de livros, ele escrevia. Em cima da mesa fumegava uma vela corcunda, a pira fúnebre dos sonhadores. Sentado à parte, eu tirava uma pestana, os sonhos pulavam ao meu redor feito gatos. E só bem tarde da noite fui acordado por um ordenança, que viera convocar

Sídorov ao Estado-Maior. Os dois saíram juntos. Então corri até a mesa em que Sídorov ficara escrevendo e dei uma folheada nos livros. Havia ali um manual de língua italiana para autodidatas,

uma reprodução do Fórum Romano e um mapa de Roma. O mapa da cidade estava todo marcado de cruzes e pontos. Debrucei-me sobre uma folha escrita e, com o coração aos pulos, torcendo os dedos, li uma carta alheia. Sídorov, o assassino macambúzio, rasgou em pedaços o algodão rosa de minha imaginação e arrastou-me pelos corredores de sua loucura ajuizada. A carta começava pela segunda folha, e eu não tive coragem de procurar o começo:

... o pulmão perfurado e desatinando um pouco, ou, como diz Serguei, perdendo a cabeça. Mas quem não perde a cabeça de um jeito, acaba perdendo de outro. Pensando bem, é melhor deixar as brincadeiras de lado... Voltemos à ordem do dia, minha amiga Viktória...

Participei da campanha de Makhnó durante três meses, uma farsa extenuante e mais nada... Só Volin ainda continua lá. Volin enverga os paramentos sacerdotais e almeja tornar-se o Lênin da anarquia. É terrível. O batko dá-lhe ouvidos, afagando os arames empoeirados de suas melenas

e soltando entre os dentes cariados sua risadinha de mujique. E eu agora já não sei se não há nisso tudo a erva daninha da anarquia, e se não passaremos a perna em vocês, prósperos membros improvisados de um cc de fabricação caseira, made in Khárkov, a capital improvisada. Bons sujeitos como vocês não gostam de lembrar agora os pecados anarquistas da juventude, e riem-se deles do alto da sabedoria dos dirigentes. O diabo que os carregue...

Depois fui parar em Moscou. Como acabei indo parar em Moscou? Os rapazes tinham esculhambado um fulano num caso de requisição ou coisa assim. Eu, besta, me intrometi. Levei uma surra que foi merecida. O machucado era o de menos, mas em Moscou, ai, Viktória, em Moscou eu emudeci de desgosto. Todos os dias as enfermeiras do hospital me serviam um grãozinho de kacha. Cheias de cerimônia, elas traziam a comida numa enorme bandeja, e eu passei a detestar aquela kacha de brigada de choque, o abastecimento fora do plano e a Moscou planificada. Depois, no soviete, encontrei um punhado de anarquistas. Eram todos janotas ou velhotes meio destrambelhados. Meti-me no Kremlin com um autêntico plano de trabalho. Passaram a mão na minha cabeça e me prometeram o cargo de assessor, caso eu me emendasse. Não me emendei. O que veio depois? Depois veio o front. O Exército de Cavalaria, a tropa,

cheirando a sangue fresco e a restos humanos.

Salve-me, Viktória! A sabedoria dos dirigentes me deixa louco e bêbado de tédio. Se você não me ajudar, acabo batendo as botas sem plano nenhum. Se existe alguém que queira um combatente morto de forma tão desorganizada, certamente não é você, Viktória, a noiva que nunca chegará

a ser esposa. E lá vem o sentimentalismo de novo, pois ele que se ferre...

Agora vamos falar do que importa. A vida militar me aborrece. O ferimento me impede de montar, o que significa que não estou mais em condições de combater. Use sua influência, Viktória, para que me mandem para a Itália. Estou aprendendo italiano e em dois meses já estarei sabendo

falar. Na Itália há fogo sob as cinzas. Lá muitas coisas estão maduras. Só faltam dois tiros. Um deles será disparado por mim. É preciso mandar o rei para o outro mundo. Isso é muito importante. O rei deles é um bom sujeito que, em nome da popularidade, faz-se fotografar na companhia de socialistas domesticados, para sair nas revistas de família.

No CC, no Narkomindel, não vá mencionar nem rei, nem tiros. Eles passariam a mão na sua cabeça e balbuciariam: "É um romântico!". Diga apenas: ele está doente, com raiva, bêbado de tédio, e só quer o sol da Itália e bananas. Pois fez ou não fez por merecer? Só para se tratar e basta (1). Do contrário, que o mandem para a Tcheká de Odessa... Lá eles são muito sensatos e...

Quanta besteira, e que modo besta e injusto de lhe escrever, minha amiga Viktória...

A Itália entrou no meu coração como uma alucinação. Para mim, a idéia daquela terra que nunca vi é doce como um nome de mulher, como o seu nome, Viktória...

1 Em italiano transliterado para o russo, no original. [n. t.]

Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade

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