Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Míriam Leitão - Uma afronta



Panorama Econômico
O Globo
15/12/2006

A sucessão dos fatos assusta. O Congresso ofereceu ao país, durante esta última legislatura, os mais fartos motivos para não acreditar nos políticos. Foram o mensalão, os sanguessugas e os vampiros. Depois, as pizzas. Deputados mentiram, foram flagrados em contradições vexatórias, enfileiraram-se no balcão do valerioduto e, após, foram perdoados por eles mesmos. Ao final da mais vergonhosa legislatura, vem a pá de cal: eles dobram o próprio salário num procedimento em tudo discutível.

Mesmo quem acha que deputado tem que ganhar muito bem, não tem como defender o procedimento adotado ontem.

É mentira que os parlamentares ganham R$12.000. É preciso somar as parcelas, penduricalhos ao próprio salário que eles vieram concedendo a si mesmos como forma de burlar a pressão da opinião pública.

Os parlamentares têm verba indenizatória, verba para gabinete, estrutura de funcionários pagos pelo contribuinte. Eles têm até auxílio selo em plena era da internet. Auxílio moradia. No mínimo, é preciso somar as partes. Parlamentares, na esdrúxula estrutura de aposentadoria do Brasil, podem se aposentar ao fim de dois mandatos. A maioria acumula aposentadorias anteriores com seus salários de parlamentares.

Não é verdade que custe pouco. Há parlamentares tentando defender que custaria apenas R$150 milhões. Um pequeno custo fiscal diante dos bilhões do Orçamento. Sabem que estão mentindo. A cada novo reajuste que propõem para si, ou para seus funcionários, sempre apresentam aquele aumento como se fosse o único. Depois há nova pressão por mais gastos.

Esse fato não pode ser visto separado do contexto. A Constituição de 1988 deu aos poderes Legislativo e Judiciário independência financeira. Eles aumentam seus gastos e mandam o Executivo pagar a conta. O Executivo, por sua vez, envia a fatura para o distinto contribuinte, que não suporta mais pagar o custo de um Estado cada vez mais ineficiente e caro. Aos parlamentares e aos integrantes do Judiciário, não interessa de onde venha o dinheiro. Neste momento exato, há um pedido de aumento de salário do Judiciário que custa R$5 bilhões. Tudo o que a ministra Ellen Gracie concordou, na negociação com o governo, foi escalonar em três anos.

Nos últimos dez anos, os gastos salariais do Legislativo aumentaram 76,3%, já descontada a inflação pelo IPCA. E o Judiciário aumentou seus gastos salariais em 117% em termos reais.

- Não há transparência: não se sabe como o dinheiro é gasto, quais são os critérios de reajuste, o que, afinal de contas, eles estão concedendo a si mesmos e aos seus funcionários. Cada reajuste isoladamente pode ter tido pequeno impacto fiscal, todos somados estão virando uma bola de neve assustadora. Levando em conta que os funcionários do setor público, de todos os poderes, têm aposentadorias que são, em média, seis vezes a aposentadoria dos trabalhadores do setor privado, o que o país está fazendo? Criando uma casta de funcionários encastelados legislando em causa própria e se distanciando de um país com suas imensas e anacrônicas desigualdades? - reagiu o economista político Alexandre Marinis.

O cientista político Lucio Rennó, professor do Ceppac, da UnB, lembrou que sempre que está perto a eleição para a presidência da Câmara e do Senado a questão do aumento vem à baila:

- Com as eleições internas, os presidentes das duas casas se sentem com pouco espaço para dizer não. De qualquer forma, não me lembro de nenhum aumento tão alto assim. Fica ainda mais estranho nesta legislatura, tão marcada por escândalos. A taxa de renovação da Câmara fica sempre em torno de 50%, ou seja, metade dos deputados que está aprovando este aumento agora será beneficiada - diz Lucio Rennó.

O que assusta é que, ao final de vários ataques à confiança que a população deposita na instituição do parlamento - episódios éticos lamentáveis, cenas de corrupção explícita, omissões vergonhosas na hora de punir os culpados e separar joio do trigo -, o Congresso toma uma decisão como essa: intempestiva e sem transparência. É uma prova de desprezo tão profundo pela opinião pública e pela avaliação que o eleitorado possa fazer disso, que é desconcertante.

Fui abordada ontem por uma pessoa que me fez uma pergunta que tem sido repetida com freqüência:

- Por que o brasileiro não se revolta e sai quebrando tudo, como em outros países?

Uma instituição internacional sediada em Brasília recebeu ontem um e-mail de um cidadão brasileiro, que se identificou e registrou no assunto "preciso de ajuda contra a corrupção". O autor da carta fazia um apelo, quase lamento, pedindo socorro à instituição sobre como reagir diante da decisão de aumento de salário que os deputados se concederam. "Gostaria de saber o que posso fazer pelo meu país", disse.

Os senhores deputados e senadores do Brasil estão brincando com uma opinião pública já ferida demais pelos tantos escândalos, pelos despropósitos, pelas ausências ao trabalho, pela falta de senso das votações, pelo vergonhoso espírito de corpo. Uma opinião pública que pode começar a se perguntar se vale a pena ter Congresso. Eis o maior perigo.

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