Panorama Econômico |
O Globo |
19/12/2006 |
Tente explicar para um estrangeiro que não saiba nada de Brasil o que é o caso Pimenta Neves. Eu não consegui, porque é inexplicável que um homem que matou uma moça trinta anos mais nova, de forma premeditada, por motivo torpe, réu confesso, condenado pelo Tribunal do Júri, receba, seis anos depois, o benefício de continuar aguardando em liberdade. Logo, logo o assassino fará 70 anos e terá outras vantagens legais. Quem vê de fora tem uma visão mais simples e direta; acha que o caso é o que é: no Brasil, pode-se matar uma moça, no auge de sua juventude e com todo o futuro pela frente, se você tiver dinheiro para pagar bons advogados que tenham sagacidade para entrar nas brechas das leis brasileiras, nos sofismas das jurisprudências. Assim, você pode matar e, seis anos e meio depois, só terá passado seis meses na cadeia. Aqui dentro, para explicar as decisões da Justiça brasileira, a pessoa sustentará que se trata do princípio do direito constitucional de que todo réu tem o direito à liberdade até que seu caso tenha transitado em julgado. Parece lógico, parece um princípio de defesa dos direitos individuais, e são decisões que afrontam a lógica e o espírito da lei. Matar é crime. E há agravantes como: premeditação e motivo torpe. Este caso contém esses agravantes. O criminoso fugiu do local e, assim, escapou de ser preso em flagrante. Permaneceu preso por apenas seis meses pelas artimanhas permitidas pela interpretação da lei no Brasil. Então um réu confesso tem de esperar que seu caso chegue ao Supremo Tribunal Federal para, então, começar a cumprir sua pena? Foi esse o argumento também que liberou o coronel Pantoja, comandante da tropa no assassinato dos sem-terra em Eldorado dos Carajás. Se isso for seguido para todos os presos brasileiros que não tiveram seu caso analisado pelo STF, então o país já resolveu um dos seus problemas: a superlotação das prisões. Elas podem, na verdade, ficar vazias. O Supremo julga casos em que estão envolvidos princípios constitucionais. Que princípio constitucional pode um assassino confesso, de crime premeditado e por motivo torpe, reclamar em seu favor? Neste caso, como em tantos outros no Brasil, a Justiça tarda e, por isso, falha. Pimenta Neves, que assassinou sua ex-namorada Sandra Gomide, pôde permanecer seis anos dos últimos seis anos e meio em liberdade, viver numa casa confortável em local aprazível, refazer sua vida, enquanto a família Gomide continua vivendo sua dor sem cura. É impossível explicar tudo isso sem pensar nos defeitos institucionais do Brasil, nas cada vez mais estranhas decisões de juízes e na impunidade, velha marca do país. Certas decisões do Judiciário parecem ter trocado de lado: tentaram ser pró-réu, e foram contra a vítima; tentaram ser a favor de direitos individuais, e ameaçam o direito coletivo. As possibilidades de redução da pena são tantas que certos crimes ficam, na prática, impunes. Veja-se o caso do assassinato de Daniella Perez. Os assassinos já estão soltos, Paula Thomaz fez curso de direito na prisão, reconstruiu sua vida; Guilherme de Pádua mudou de cidade, adotou nova religião e também refez sua vida, com outra mulher. Eles são jovens e têm um longo futuro pela frente. E quanto a Daniella? Cabe à mãe, Glória Perez, carregar a dor sem cura de saber que sua filha foi morta, os assassinos saíram da prisão após uma pena muito menor do que a que foram condenados e estão de vida nova. Daniella foi vítima de um casal enlouquecido. Sandra foi mais um caso de crime contra a mulher; por ciúme, por senso de propriedade. As duas têm em comum um fato: a pena maior coube às suas próprias famílias. Este ano foi particularmente denso em ataques a mulheres. Na semana passada, houve outro crime: uma mulher foi assassinada pelo ex-marido inconformado com a separação. Os jornais trazem casos de homicídios e espancamentos de mulheres com muita freqüência. O Instituto Patrícia Galvão e o Ibope fizeram uma pesquisa este ano sobre o assunto que mostrou que 51% dos pesquisados conhecem pelo menos uma mulher que foi agredida pelo seu companheiro e, em cada quatro entrevistados, três consideram que as penas aplicadas aos que cometem violência contra a mulher são irrelevantes e que a Justiça trata esse drama como um assunto menos importante. Logo que a jornalista Sandra Gomide morreu, assassinada pelo seu chefe, na época diretor de redação do "Estado de S. Paulo", ex-funcionário do Banco Mundial, apareceram algumas análises, feitas por pessoas que conheceram ambos nas redações dos jornais, que tentavam criticar a vítima. Ora, a vítima é a vítima. É velha no Brasil a tendência de se culpar a pessoa morta pelo crime. O mais bem sucedido desses casos de contorcionismo jurídico foi o que deu a Doca Street o direito de matar Ângela Diniz. Hoje, ele mesmo, com a vida refeita, admite que "legítima defesa da honra" foi um argumento jurídico que não refletiu os fatos. Da mesma forma, é falso o argumento de que é preciso esperar que um dia, nas calendas, chegue ao Supremo Tribunal Federal o caso Pimenta Neves. Ele está se beneficiando de manobras protelatórias ao cumprimento de sua pena. E deve começar a cumpri-la já, antes que a Justiça cometa a injustiça por decurso de prazo. O caso Pimenta Neves não é uma questão jurídica envolvendo direitos individuais, é um caso inexplicável de impunidade. |
Entrevista:O Estado inteligente
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terça-feira, dezembro 19, 2006
Míriam Leitão - O inexplicável
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