Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, dezembro 19, 2006

Merval Pereira - Lula, apesar de tudo



O Globo
19/12/2006

Ao mesmo tempo em que o Congresso vive dias de agonia, tentando uma saída para o acintoso auto-aumento que se concedeu, e talvez também por isso, uma pesquisa do Ibope mostra o presidente Lula encerrando seu primeiro mandato com aprovação recorde de 57%, o maior percentual de ótimo e bom obtido pelo governo desde a posse em 2003. Um aumento de nada menos que oito pontos percentuais em relação ao levantamento de setembro, um mês antes do primeiro turno. Essa surpreendente performance significa que o resultado do segundo turno, que deu a Lula 60% dos votos, permanece intocado, apesar do apagão aéreo e do pífio crescimento da economia este ano.

Mostra também que o imobilismo do presidente na definição de seu segundo governo só o favorece, diante do desgaste político dos parlamentares e da falta de eficácia da oposição, que não encontrou ainda um caminho para se apresentar como alternativa viável de governo.

O cientista político Candido Mendes, em seu novo livro "Lula, apesar de Lula", já antevia que o governo que se inicia depois da reeleição "tem, de saída, a vantagem da desmoralização dos establishments, tanto pelo escândalo atingido com a transformação de comissão de inquérito em processos de delegacia, quanto pela absoluta exaustão das propostas políticas evidenciadas na redundância e na pasmaceira das candidaturas".

A oposição conservadora a Lula, na opinião de Candido Mendes, será afetada pela desmoralização "das caixas de ressonância congressuais", com os partidos políticos atingidos pelo último escândalo, o dos sanguessugas. Pelas mesmas razões, também o PT perderá sua força política no segundo mandato. Candido Mendes, que vem escrevendo desde o governo Collor a história imediata do país, analisa o governo Lula em seu quarto livro com uma visão ao mesmo tempo otimista e de alerta.

Ele adverte que o suporte a Lula "tem gravames secretos, dependendo tanto da paciência do Brasil da marginalidade como da sua condição de não se mimetizar com a impaciência da classe trabalhadora e, sobretudo, com o frenesi mudancista e cutâneo do país instalado". Esse "país instalado" desertou da adesão a Lula, o que, na opinião do cientista, daria a ele uma inesperada chance de se libertar "da pecha de cumplicidade ao modelo neoliberal, ou de falta de pulso para levá-la de vencida".

Ao contrário do consenso estabelecido, de que o país precisa de reformas estruturais, especialmente a política, Mendes acha que "a ação legislativa não é a tônica nem a força do novo mandato, nem há como fazer da reforma política uma prioridade do aparelho legal". Para ele, "as propostas portentosas de mudança impossível volatilizam-se" diante da "reiteração ostensiva dos caixas dois e da manutenção do regime de clientela no Legislativo, transferido, impávido, ao novo Congresso".

A prioridade do segundo governo Lula deveria ser, para ele, uma reforma urbana que consolidasse o "estado de bem-estar rudimentar" que ele considera estar em formação no país, a partir da experiência do Bolsa Família, com o enlace da educação com a saúde. O Ministério das Cidades teria um papel-chave nesse processo, com um programa de habitação popular a ser desenvolvido com as prefeituras, no que seria uma aliança política acima das alianças clientelistas clássicas com o que classifica de "partidões nacionais".

Qual a saída?

A discussão sobre o vergonhoso auto-aumento que os congressistas se concederam poderá ganhar ares de política pública se for vencedora a tese de que a decisão tem que ser votada no plenário da Câmara e do Senado. A vantagem não seria apenas obrigar cada um deles a revelar publicamente sua posição com relação ao aumento, mas abrir espaço para discutir mais amplamente a maneira como são remunerados os parlamentares.

Um deputado federal ganha subsídios de R$12.700 mensais, brutos, estes com imposto de renda de 27,5%. Mas acrescentam a isso R$180 mil anuais (R$15.000 por mês), sem imposto de renda, a título de verba indenizatória, criada há seis anos como maneira de compensar a falta de condições políticas para dar um aumento como esse de agora.

Essa verba adicional ressarci os parlamentares por gastos como gasolina, compra de material de trabalho, inclusive computadores e softwares, divulgação de atividades parlamentares, assinatura de jornais e revistas. Deputados e senadores podem sacar a verba a qualquer época do ano, não necessariamente todos os meses, desde que apresentem as notas correspondentes, e existem cerca de 300 funcionários apenas para checar essas notas. Mesmo assim, já houve diversas denúncias de fraudes e uso de notas frias que nunca foram esclarecidas.

A proposta inicial, e que será retomada pelo deputado Miro Teixeira, era que essa verba indenizatória deixasse de existir. Miro, que é dos poucos que não a usa, acha que só com ela já está caracterizada uma burla legal, pois se somando ao subsídio oficial, os deputados já receberiam R$27.700, acima, portanto, do teto constitucional. Se a equiparação ao salário do Supremo fosse mantida, mas extinta a verba indenizatória, os parlamentares teriam na prática uma redução salarial.

A proposta de Miro vai além: ele quer impedir que parlamentares acumulem vencimentos com aposentadorias e pensões que trazem de outras atividades no poder público federal, estadual ou municipal. Pelos últimos levantamentos, cerca de 25% deles ganham mais que o teto constitucional com essas acumulações. Outras mordomias, como moradia oficial ou verba para hotel, carro e para correios, também deveriam acabar.

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