Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Míriam Leitão - Aos navegantes


Panorama Econômico
O Globo
7/12/2006

Senhores passageiros, apertem os cintos. Sumiu tudo, menos os pilotos. Sumiu sinal no radar, controle aéreo, autoridade, comando, atenção aos passageiros, comunicação de rádio, informação de pousos e decolagens, totens eletrônicos. O som dos aeroportos não sumiu exatamente, mas não dá para ouvir. Sumiu até carrinho. Foi o que constatei no caótico Galeão ontem. Ainda bem que viajo leve.

Uma fila começava no check-in da TAM, atravessava todo o saguão e terminava na outra extremidade, no embarque internacional. Tinha uma menor, e fui andando até chegar num grupo que parecia ser o final da fila.

- O que é esta fila?

- Não sabemos - respondeu-me um rapaz.

- Mas por que estão nesta fila?

- Não estamos na fila, apenas encostados aqui.

- O que vocês pretendem, então?

- Cenas. Queremos cenas para um filme.

Era cinematográfico. Mais para filme catástrofe.

- Vocês, que estão só olhando a cena, viram alguma moça da TAM?

- Sumiram. Aliás, está sumindo também bagagem. Não fica de bobeira. A gente filmou um grupo com cara de que é especialista nisso.

A fila era do cartão vermelho e emergências. Era menor, mas não andava.

Tinha tentado tirar meu cartão no totem eletrônico, pois fiz o check-in via internet, mas estavam todos desligados. Desligados por uma pane no sistema da empresa, porque os vôos estão cancelados ou porque até eles estão confusos? Perguntas que os passageiros faziam a si mesmos. Não havia a quem perguntar. As atendentes da empresa que tem orgulho de ser brasileira fugiam dos brasileiros.

Liguei para o meu escritório e pedi reforços na luta por respostas para as seguintes angústias: qual o atraso do vôo? Estava cancelado ou mantido? Havia pousos e decolagens em Brasília? Os telefones da TAM e dos aeroportos não atendiam. Quando conseguimos contato, a informação foi lacônica:

- Está muito complicado, os vôos estão todos sem previsão - informou a funcionária, meio aérea.

Aérea também, a Anac deu informações aos jornalistas, no meio da manhã.

- O dia será muito complexo. É tipo uma grande enchente em que a água enche mais rápido que esvazia - disse Milton Zuanazzi.

A aviação civil está fazendo água ou ele estava falando sobre São Paulo?

Nada dava para entender. O sumiço das atendentes, por exemplo. Afinal, a empresa não tinha culpa. Tem outras culpas, mas esta confusão faz de todos nós - passageiros, empresas aéreas, agências de viagem, hotéis, cidades turísticas, produtores de eventos e tantos mais - vítimas da mesma incompetência governamental que tornou uma simples viagem doméstica um tormento. A empresa poderia dar aos passageiros, ao menos, o conforto de uma informação.

Na ausência da companhia, informávamo-nos uns aos outros e já reconhecíamos os companheiros do vôo. Cada informação era compartilhada. Rebeca e Cláudia tentavam ir para uma reunião em Brasília. Nós nos conhecemos na hora de tentar tirar o cartão no totem apagado e depois ficamos ligadas. Uma família capixaba que mora na Itália tentava chegar a Vitória. Estavam sendo derrotados.

- Ainda bem. Assim eu convenço a minha mulher que fica querendo voltar para o Brasil - disse o único conformado do aeroporto.

Do meu lado na fila, um passageiro descansava a pasta preta pesada em cima da minha mala vermelha e combinamos: ele, que está com problemas no joelho, não tem que ficar carregando aquele peso; e eu, curiosa por profissão, podia circular atrás de notícias frescas sabendo que minha querida mala estava segura. Nem precisava ter andado: à minha frente, uma passageira para Porto Alegre sabia tudo.

- Isso é a ponta de um iceberg. É apenas a parte visível do caos no transporte brasileiro, em todos os meios de transportes. E vai piorar. O país vai parar.

- E nós, que viajávamos tranqüilos, achando que estava tudo bem - comentou o senhor da pasta descansada.

A queda do avião da Gol enlutou muitas famílias brasileiras, enlutou a família de Débora Thomé, aqui da coluna. O acidente detonou um processo que se espalha em círculos e que vai revelando, dia após dia, o descontrole do transporte aéreo de passageiros. Autoridades, que deveriam ter respostas, têm suposições, hipóteses e suspeitas. Supõem que os pilotos do Legacy estavam testando os limites do avião com o transponder desligado; trabalham com a hipótese de que nada errado há nos céus do Brasil; suspeitam que houve uma sabotagem.

Diariamente, milhares de brasileiros tentam cruzar o espaço aéreo para trabalhar, cumprir compromissos, descansar, visitar parentes e amigos, e não sabem a que horas decolam, quando chegam. Diariamente, centenas de reuniões são desmarcadas. Ia andando pelas filas ouvindo pedaços de conversas sobre cancelamento de compromissos. Rebeca e Cláudia cancelaram o delas. Diariamente, milhares de brasileiros entregam suas vidas ao sistema de transporte aéreo, inseguros e assustados. Enquanto isso, as autoridades que governam o Brasil continuam esperando, como se não fossem elas os pilotos da pior crise aérea da História deste país.

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