A morte de Pinochet mostra que os abismos
ideológicos não precisam paralisar os países
Diogo Schelp
Fotos Rickey Rogers/Reuters e Victor Ruiz Caballero/Reuters | |
Pinochet ao deixar o comando das Forças Armadas, em 1998, e, na página ao lado, seu funeral, em Santiago: dezessete anos no poder |
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Logo que foi anunciada a morte de Augusto Pinochet, aos 91 anos, na semana passada, milhares de chilenos foram à Praça Itália, no centro de Santiago, comemorar e estourar champanhes. No dia seguinte, no velório na Academia Militar, 60.000 pessoas enfrentaram filas de sete horas para o último adeus ao general. À primeira vista, o contraste entre essas manifestações de júbilo e pesar pode dar a impressão de que o Chile é um país dividido entre duas concepções políticas totalmente antagônicas. Não é nada disso. "O que se viu foram apenas arroubos emocionais de vida curta", disse a VEJA o historiador Joaquín Fermandois, da Pontifícia Universidade Católica do Chile. "O que prevalece hoje entre os chilenos é um consenso muito claro sobre o tipo de país que eles querem." O que eles querem pode ser sintetizado em dois princípios básicos: preservar a democracia e a economia de mercado. Para o bem e para o mal, ambos os conceitos têm a ver com o legado de Pinochet. Primeiro, depois de dezessete anos de brutal regime militar, os chilenos não podem nem pensar em viver novamente sob um Estado policial. Segundo, o modelo de desenvolvimento e integração à economia global, que colocou o Chile às portas do Primeiro Mundo, é fruto das reformas liberais impostas pelo ditador nos anos de chumbo.
Nessa questão do legado dual de Pinochet, o maior engano de julgamento é aquele que tenta estabelecer conexão inseparável entre as duas faces de seu regime. "Há nessa visão uma armadilha, a crença de que sem a ditadura não teria sido possível atingir um bom desempenho econômico", disse a VEJA o sociólogo canadense Marcus Taylor, autor do livro De Pinochet à Terceira Via – Neoliberalismo e Transformações Sociais no Chile. Reformas liberais similares promovidas por Margaret Thatcher na Inglaterra resultaram em desenvolvimento econômico acelerado sem arranhar minimamente a democracia. Por outro lado, modelos econômicos ultrapassados não dão certo mesmo quando garantidos por regimes de força. De outra forma, a ditadura cubana teria criado um país próspero, e não um dos mais pobres da América Latina. Tampouco é correto imaginar que o golpe de Estado de 1973 foi uma reação justificável diante da crise institucional criada pelo governo marxista. O golpe, com sua inevitável seqüência de brutalidade e horror, não se justifica. Sobretudo porque o objetivo dos golpistas não era apenas afastar o perigo comunista, e sim acabar com a democracia.
The New York Times |
Acima, Allende durante a resistência ao levante militar no Palácio de La Moneda, pouco antes de se suicidar. Abaixo, o palácio bombardeado pelas tropas golpistas: Pinochet só aderiu à conspiração dias antes do golpe |
Ivan Alvarado/Reuters |
A morte de Pinochet tira do caminho uma figura anacrônica da Guerra Fria, com a qual os chilenos tinham dificuldade em lidar. Dez anos atrás, teria sido diferente. A popularidade do general, então figura influente na política chilena, girava em torno de 40%. Depois de ele deixar o comando do Exército, de sua prisão por crimes contra a humanidade em Londres, em 1998, dos processos no Chile por violação dos direitos humanos e da descoberta de suas contas secretas no exterior, ele se tornou um fantasma político. Nenhum político de direita ousou se declarar seu herdeiro nas últimas eleições presidenciais. As emoções negativas que Pinochet desperta vêm, sobretudo, do fato de ele ter personificado a tirania sangrenta dos últimos estágios da Guerra Fria. "O que começou como um regime militar à brasileira logo se transformou numa ditadura caudilhista ao estilo do espanhol Francisco Franco", diz o historiador chileno Alfredo Riquelme, da PUC do Chile.
Primeiro marxista a ascender ao poder em eleições livres, o socialista Salvador Allende chegou a ser visto, sobretudo entre os europeus, como o sinal de que era possível conciliar socialismo com democracia. O cenário doméstico era bem mais obscuro. O socialista, que a exemplo de Lula já tinha perdido três eleições, recebeu apenas um terço dos votos, em 1970. Sua vantagem foi de apenas 40.000 votos. Para receber o aval do Congresso, ao qual cabia decidir na falta de um vencedor majoritário, Allende prometeu controlar a esquerda radical. Não cumpriu a promessa. Iniciou um processo exacerbado de nacionalizações e permitiu que grupos de extrema esquerda invadissem fábricas e fazendas. O Chile viu-se engolfado pelo caos econômico e pela tensão política. Allende tinha escolhido Pinochet para o comando do Exército dezoito dias antes do golpe exatamente porque se tratava de um general obscuro, intelectualmente limitado e sabidamente apolítico. "Quem é Pinochet?", perguntou o ex-presidente Eduardo Frei no dia da queda de Allende.
O golpe de 1973 foi um produto da Guerra Fria. A CIA, o serviço secreto americano, que tinha tramado para impedir a posse de Allende em 1970, recebeu carta-branca e verbas para ajudar a organizar e financiar o golpe. Depois, os Estados Unidos iriam garantir o apoio internacional a Pinochet. "Os valores democráticos ficavam prejudicados quando se acolhiam ditaduras de direita em grande parte do Terceiro Mundo como forma de evitar ditaduras de esquerda, e, ainda assim, todos os governos desde Truman tinham feito isso", escreveu o americano John Lewis Gaddis no livro História da Guerra Fria. Só no governo de Jimmy Carter, a partir de 1977, os direitos humanos passaram a fazer parte indissociável da política externa americana.
Ivan Alvarado/Reuters |
Chilenos nos funerais de Pinochet: no fim, apoio reduzido |
Quando se pôs à frente da sublevação, Pinochet usou força desproporcional. Bombardeou o palácio de governo (Allende preferiu o suicídio à rendição), criou campos de concentração (o mais famoso deles no Estádio Nacional) e seu governo assassinou no primeiro ano metade das 3 200 pessoas que seriam mortas durante a ditadura. Outras 30 000 foram presas e torturadas, de acordo com uma comissão oficial de investigações. "Para se legitimar no poder, ele não apenas aniquilou as vozes dissidentes da esquerda e dos tradicionais opositores, como iniciou uma caça às bruxas dentro das próprias Forças Armadas", disse a VEJA o cientista político Manuel Antonio Garretón, da Universidade do Chile. A atual presidente Michelle Bachelet foi presa com sua mãe e torturada. Seu pai, um general, morreu de ataque cardíaco na prisão.
Tamanha era a ousadia da Dina, o serviço de inteligência chileno, que matou um general exilado, Carlos Prats, com uma bomba em Buenos Aires, em 1974. Dois anos depois, explodiu o carro de Orlando Letelier, ex-ministro de Relações Exteriores de Allende, em Washington. A explosão foi ouvida pelo presidente americano dentro da Casa Branca. "O sentimento de impunidade do regime dentro do Chile era tal que os agentes de Pinochet extrapolavam, imbuídos da convicção messiânica de que valia tudo no combate a comunistas", disse a VEJA o chileno Patricio Bernedo, diretor do Instituto de História da PUC do Chile.
A revolução capitalista foi quase acidental. Como a maioria dos ditadores latino-americanos, Pinochet era instintivamente um nacionalista econômico. Depois de dar algumas cabeçadas, teve a boa idéia de permitir que economistas liberais (os Chicago Boys) usassem o Chile como laboratório para substituir uma economia de inspiração européia por outra, do tipo americano. O primeiro resultado foram duas recessões brutais e o colapso financeiro no início dos anos 80. Políticas mais pragmáticas colocaram ordem na casa mais tarde, mas a economia só decolou depois do restabelecimento da democracia, em 1990. O resultado final foi a criação no Chile de um capitalismo empreendedor, diferente do paternalismo estatal tradicional na região. No governo desde então, a Concertación, a coalizão entre socialistas e democratas-cristãos criada para derrotar Pinochet no plebiscito convocado pelo ditador em 1988, mantém intactos esses princípios econômicos. "O plebiscito havia sido arquitetado pelo próprio regime para dar legitimidade ao governo de Pinochet e, por isso, ele foi pego de surpresa pela derrota", disse a VEJA Arturo Valenzuela, diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Georgetown, nos Estados Unidos.
Uma questão remanescente é por que Pinochet deixou o poder em 1990. A explicação: mais uma vez, ele sentiu para onde soprava o vento da história. As condições que o tinham levado ao poder (Guerra Fria, conflito interno, polarização ideológica) haviam desaparecido. Ironicamente, o general tinha cavado sua própria ruína ao ajudar a criar uma sociedade mais moderna e aberta ao mundo, incompatível com uma ditadura com tal currículo de violações dos direitos humanos. Augusto Pinochet resignou-se à sua sorte, provavelmente sem imaginar que a questão dos direitos humanos e da corrupção iria corroer sua memória a ponto de a presidente Bachelet ter negado honras de Estado no funeral do general.
Com reportagem de Thomaz Favaro