Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Lula no corredor polonês

Lula no corredor polonês

Artigo - Gaudêncio Torquato
O Estado de S. Paulo
3/12/2006

O dilema está posto. Os movimentos sociais prometem pressão durante o segundo mandato de Lula, com o objetivo de puxar o governo para a esquerda e "disputar espaço diante da ambigüidade que marcou o primeiro, com sua ortodoxia econômica e seus pactos pela governabilidade". Essa é a meta defendida por entidades que se reuniram recentemente em São Paulo. João Pedro Stédile, comandante do Movimento dos Sem-Terra (MST), não se contenta com os 500 encontros que o presidente teve com organizações sociais e faz um balanço negativo da reforma agrária. Luiz Dulci, ministro responsável pela interlocução com movimentos populares, garante que o governo terá maior participação popular.
Lula, por sua vez, acenando com a bandeira da paz, ensaia uma grande coalizão, abre conversas por todos os lados, incluindo até encontros com os "amigos" tucanos Aécio Neves e José Serra, para um entendimento. Anuncia ao Brasil um "mandato de convergência".
Os propósitos sinceros não escondem os climas nervosos que advirão no segundo mandato, não nos minutos iniciais do jogo, mas depois da acomodação dos jogadores em campo. Lula fará o que for possível para cumprir a promessa de fazer um governo melhor que o anterior. Administrará de maneira aberta e menos arrogante, mais solidária e menos pautado pelo que chama de "herança maldita" do tucanato. Apesar de manter cacoetes da interminável série "nunca antes neste país", vê-se uma pessoa convencida de que a reforma do edifício Brasil carece da colaboração de todos, governistas e oposicionistas. É o caso, por exemplo, da reforma política, prioridade absoluta dos congressistas. Por trás dessa moldagem mais democrática, distingue-se o arquiteto da coalizão, o ministro Tarso Genro, um perfil que domina conceitos de ciência política.
Ocorre que a vontade de inserir o novo mandato numa moldura de magnanimidade esbarra nos contrafortes de uma cultura que respira ambição, individualismo e imediatismo pelos poros.
A continuidade da gestão petista, apesar da ampla teia de apoios no Congresso, não será um mar de rosas. Lula atravessará um corredor polonês composto, de um lado, pelo grupo das tapinhas nas costas e, de outro, pela banda das cobranças frontais.
A composição da nova bancada parlamentar sinaliza resistências a discursos radicais. Na renovação de 48% na Câmara dos Deputados, com a reeleição de 269 parlamentares e a renovação de 244, o setor liberal ganhou mais força a partir da bancada de empresários, que pulou de 104 para 120, crescimento também ocorrido no núcleo do agronegócio. A bancada sindicalista, que faz contraponto à representação de setores produtivos, sofreu redução. Para compensar a perda, deverá engrossar a expressão crítica de partidos que desfraldam a bandeira ideológica e de movimentos sociais. Por conveniência tática, prevê-se um realinhamento de todos os grupos, incluindo uma parcela do PT, que não se conformam com as diretrizes econômicas da administração lulista.
Lula não poderá cortar os nós que se apresentarão com um simples golpe de espada, à moda de Alexandre, o Grande. Se o fizer, sem técnica e arte, abrirá fissuras que tumultuarão o governo. A ele será lembrado o tórrido discurso do segundo turno da campanha, quando caprichou em abordagens como embate de classes, política externa para o terceiro mundo, condenação à privatização, ampliação do orçamento social e incentivo aos movimentos populares, entre outros.
Uma banda do corredor polonês irá cobrá-lo. Na carruagem do resgate ético e do reencontro com os eixos históricos, o PT desfraldará bandeiras antigas, não se descartando a hipótese de que o fará com o empuxo da mobilização social.
O lema já foi arrumado pelo MST: "Ou tudo ou nada." As armas começam a ser ensarilhadas.
A contenda será acirrada, principalmente quando os temas resvalarem pela arena das reformas sindical, trabalhista, previdenciária e tributária, envolvendo as bancadas e a pressão das entidades organizadas.
Um exercício de observação das forças de ocupação, a partir de fevereiro de 2007, aponta para intensa movimentação. O primeiro exército, comandado pelos generais do PT e do PMDB, se posicionará na vanguarda de defesa do Palácio do Planalto.
Mas os flancos exibirão fragilidades. As divisões petistas integrarão todas as suas unidades para defender de maneira irrestrita a política palaciana? A ala mais radical amenizará o discurso, se o presidente exigir um cala-boca? Que partido governista será porta-voz dos movimentos sociais? As duas divisões peemedebistas, mesmo unificadas na coalizão, endossarão plenamente as teses do governo? E se, mais adiante, a fome por mais cargos for maior que a cesta básica oferecida, haverá racha? Olhe-se para os partidos com assento na lateral esquerda, PSB, PDT e PC do B, cujo escopo inclui a estatização de setores essenciais a cargo do Estado.

Divisões petistas vão se unir e defender de maneira irrestrita a política palaciana?

Aceitarão a privatização do Aeroporto de Natal (RN), iniciativa que abrirá o programa de privatização da infra-estrutura aeroviária, anunciado pela ministra Dilma Rousseff? Não será tranqüila a passagem do presidente Lula pela cordilheira do segundo mandato.
Para não tropeçar, precisará laçar bem os cordões do sapato. E mais, o compromisso de atender aos pleitos dos movimentos sociais é, hoje, mais forte. A pressão será administrada por um Executivo menos disposto ao desgaste com o Parlamento, e este, por sua vez, será mais conservador que o anterior. Além disso, a fundação que sustenta a estrutura do governo usa o ferro macroeconômico dos tucanos.
Não é improvável que o "mandato da convergência" abra espaço para a "insurgência contra o mandato". Na guerrinha dos contrários, Lula terá uma arma secreta. Em 64, o deputado baiano Raimundo Reis foi convocado a depor: "O sr. é marxista? Não, coronel, sou pessedista. Por que defende ideologias estranhas? A minha ideologia é a do PSD e está todo dia no Diário Oficial, com demissões, verbas e nomeações. É isso que defendo". O Diário Oficial é a arma do presidente para desempatar o jogo.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político.

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