Contrato revelado por decisão
de juiz mostra que, mesmo sem
ter concessão, empresa de Lulinha
comanda canal de TV
Marcelo Carneiro
Cenas dos programas da PlayTV, ex-Rede 21: até o nome do canal mudou |
Como se sabe, governos não produzem riqueza. Governos se apropriam da riqueza gerada pelo engenho, arte e suor dos cidadãos e das empresas. Principalmente por essa razão, as sociedades desenvolveram mecanismos de vigilância sobre os governantes e autoridades com acesso ao segredo do cofre onde se guarda o dinheiro produzido por todos. Esse cofre é chamado Erário nos países de língua portuguesa e espanhola. Denomina-se Tesouro na maioria dos países de colonização inglesa. A Grã-Bretanha prefere o termo Exchequer, cuja origem é a mesa quadriculada (chequered table) que os invasores normandos no começo do segundo milênio usavam, à maneira de um ábaco, para calcular as moedas coletadas como impostos. Os termos variam, mas a noção básica fixada na vida das nações civilizadas é a de que o Tesouro é da nação. O Tesouro não pertence aos que estão na efêmera posição de vigiá-lo.
Por essa razão, faz parte da higidez das sociedades equilibradas e coesas que os detentores da chave do cofre do Tesouro da nação sejam examinados por critérios ainda mais rigorosos do que os demais. Não é só no Brasil que essa vigilância é encarada como perseguição ou preconceito. Mas a compulsão em se manter fora do alcance dos mecanismos de vigilância da sociedade tornou-se a marca registrada dos atuais governantes brasileiros – no que são ajudados por esbirros de toda ordem. No ano passado, VEJA revelou que a súbita multiplicação do patrimônio e da renda de Fábio Luís da Silva, o Lulinha, filho do presidente, coincidia com a chegada do pai à Presidência da República. De um simples estagiário de biologia, Fábio Luís alçou-se ao posto de sócio da Telemar, uma das grandes empresas de telefonia do país – com óbvios e claros interesses pendentes no governo federal.
Mais tarde VEJA revelou que Lulinha se associara a uma das grandes emissoras de televisão do país, a Rede Bandeirantes – que se tornou concomitantemente destino preferencial de verbas de publicidade distribuídas pela própria Presidência da República e por empresas estatais. Lulinha é um dos sócios da Gamecorp, que se associou à Rede 21, canal que pertence à Bandeirantes. As revelações passaram a ser tratadas como tabu. Durante a recente campanha presidencial, a oposição achou que seria inadequado levantar a questão, que definiu erradamente como intromissão em assuntos de família. No Parlamento ouviu-se uma ou outra admoestação sem conseqüência feita por políticos oposicionistas. Não fosse a ação de uma promotora de São Paulo que decidiu investigar a mudança para melhor na sorte financeira do filho do presidente depois da posse do pai, a questão teria seguido o padrão africano, em que potentados e seus parentes se postam acima da lei – enquanto quem os denuncia é transformado em pária, indivíduo desrespeitoso, desleal e sem limites.
Na semana passada, uma inesperada revelação feita pelo jornal Folha de S.Paulo trouxe de novo a questão tabu para o centro das atenções. O jornal descobriu que o juiz Régis Rodrigues Bonvicino, de São Paulo, estava encarregado de julgar uma ação cível movida pela Rede 21, do Grupo Bandeirantes, contra a Editora Abril, que edita VEJA. A emissora em questão é aquela que se associou ao filho do presidente. O juiz Bonvicino aceitou estudar a ação, mas indeferiu de pronto dois pedidos dos acusadores: primeiro, o de que o contrato entre o filho do presidente e a emissora fosse mantido em segredo e, segundo, o de que VEJA fosse obrigada a publicar a resposta dos acusadores antes mesmo de julgada a ação. A abertura do contrato e a revelação de seus termos não poderiam ser mais positivas para a proteção do Tesouro.
Da leitura dos termos do contrato se depreende que:
• Os recursos obtidos de órgãos oficiais e de empresas privadas pela Gamecorp e pela Rede 21 são divididos meio a meio.
• O que oficialmente é apresentado como uma simples "venda de conteúdo televisivo" da Gamecorp ao canal de televisão tem os contornos de um compromisso bem mais profundo que beira a transferência de concessão pública. Isso é tolerado no mercado, mas não tem total amparo legal.
• A empresa de Fábio Luís pode chegar a ocupar 22 das 24 horas em que o canal fica no ar. Para um especialista em legislação societária e um advogado com atuação no mercado de televisão ouvidos por VEJA, não existe nada parecido no mercado. Esse grau de ocupação previsto no contrato para uma "terceira fase" configuraria a transferência de concessão pública.
A questão está longe de se aclarar completamente. As relações da emissora com o filho do presidente podem ser perfeitamente legais. É inescapável, porém, que o fato de o negócio ser azeitado por generosas fatias de dinheiro sob a guarda do Tesouro mas pertencente aos cidadãos – parte desses recursos controlada diretamente pela Presidência da República – torna a transação de interesse de todos os brasileiros. Foi justamente isso que o juiz Bonvicino reconheceu ao decidir abrir ao público os termos do contrato. Escreveu Bonvicino: "Convém ao interesse público que o contrato seja regido pelo princípio da publicidade porque um dos contratantes é filho do presidente da República (...) e a Rede 21 e o Grupo Bandeirantes são regidos por normas públicas". O processo contra VEJA em virtude das revelações que fez continua criminal e civilmente. A emissora se sente vítima de calúnia e difamação. Pede também uma indenização por danos a sua imagem que a revelação de detalhes de sua associação com o filho do presidente teria causado. Em qualquer país civilizado do planeta, quem estaria pressionado a dar explicações e ser processado seria a emissora que se associa ao filho do presidente – de maneira legal ou fraudulenta, não importa – para, juntos, atraírem verbas públicas. Desserviço ao Brasil é tratar o assunto como uma intromissão indevida na privacidade familiar do presidente ou como uma disputa comercial de um órgão de imprensa contra outro. O sujeito de tudo isso é o Tesouro, a riqueza da nação. Como se sabe, governos não produzem riqueza.
"Convém ao interesse público que o contrato seja regido pelo princípio da publicidade porque um dos contratantes é filho do presidente da República."
Juiz Régis Bonvicino, em despacho que negou o pedido de sigilo da Rede 21 sobre o contrato com a Gamecorp
O CONTRATO ABERTO
Embora a Rede 21, do Grupo Bandeirantes, sustente que apenas compra material produzido pela Gamecorp, produtora do filho de Lula, especialistas que analisaram o contrato consideram que a operação realizada entre as empresas pode caracterizar transferência de concessão pública. Isso porque, pelos termos da parceria, a Gamecorp poderá ocupar até 22 das 24 horas diárias de programação do canal, além de se responsabilizar por boa parte da receita da operação