Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 02, 2006

Gamecorp Juiz abre o contrato da firma de Lulinha com TV

Muito mais que uma parceria

Contrato revelado por decisão
de juiz mostra que, mesmo sem
ter concessão, empresa de Lulinha
comanda canal de TV


Marcelo Carneiro

Cenas dos programas da PlayTV, ex-Rede 21: até o nome do canal mudou

Como se sabe, governos não produzem riqueza. Governos se apropriam da riqueza gerada pelo engenho, arte e suor dos cidadãos e das empresas. Principalmente por essa razão, as sociedades desenvolveram mecanismos de vigilância sobre os governantes e autoridades com acesso ao segredo do cofre onde se guarda o dinheiro produzido por todos. Esse cofre é chamado Erário nos países de língua portuguesa e espanhola. Denomina-se Tesouro na maioria dos países de colonização inglesa. A Grã-Bretanha prefere o termo Exchequer, cuja origem é a mesa quadriculada (chequered table) que os invasores normandos no começo do segundo milênio usavam, à maneira de um ábaco, para calcular as moedas coletadas como impostos. Os termos variam, mas a noção básica fixada na vida das nações civilizadas é a de que o Tesouro é da nação. O Tesouro não pertence aos que estão na efêmera posição de vigiá-lo.

Por essa razão, faz parte da higidez das sociedades equilibradas e coesas que os detentores da chave do cofre do Tesouro da nação sejam examinados por critérios ainda mais rigorosos do que os demais. Não é só no Brasil que essa vigilância é encarada como perseguição ou preconceito. Mas a compulsão em se manter fora do alcance dos mecanismos de vigilância da sociedade tornou-se a marca registrada dos atuais governantes brasileiros – no que são ajudados por esbirros de toda ordem. No ano passado, VEJA revelou que a súbita multiplicação do patrimônio e da renda de Fábio Luís da Silva, o Lulinha, filho do presidente, coincidia com a chegada do pai à Presidência da República. De um simples estagiário de biologia, Fábio Luís alçou-se ao posto de sócio da Telemar, uma das grandes empresas de telefonia do país – com óbvios e claros interesses pendentes no governo federal.

Mais tarde VEJA revelou que Lulinha se associara a uma das grandes emissoras de televisão do país, a Rede Bandeirantes – que se tornou concomitantemente destino preferencial de verbas de publicidade distribuídas pela própria Presidência da República e por empresas estatais. Lulinha é um dos sócios da Gamecorp, que se associou à Rede 21, canal que pertence à Bandeirantes. As revelações passaram a ser tratadas como tabu. Durante a recente campanha presidencial, a oposição achou que seria inadequado levantar a questão, que definiu erradamente como intromissão em assuntos de família. No Parlamento ouviu-se uma ou outra admoestação sem conseqüência feita por políticos oposicionistas. Não fosse a ação de uma promotora de São Paulo que decidiu investigar a mudança para melhor na sorte financeira do filho do presidente depois da posse do pai, a questão teria seguido o padrão africano, em que potentados e seus parentes se postam acima da lei – enquanto quem os denuncia é transformado em pária, indivíduo desrespeitoso, desleal e sem limites.

Na semana passada, uma inesperada revelação feita pelo jornal Folha de S.Paulo trouxe de novo a questão tabu para o centro das atenções. O jornal descobriu que o juiz Régis Rodrigues Bonvicino, de São Paulo, estava encarregado de julgar uma ação cível movida pela Rede 21, do Grupo Bandeirantes, contra a Editora Abril, que edita VEJA. A emissora em questão é aquela que se associou ao filho do presidente. O juiz Bonvicino aceitou estudar a ação, mas indeferiu de pronto dois pedidos dos acusadores: primeiro, o de que o contrato entre o filho do presidente e a emissora fosse mantido em segredo e, segundo, o de que VEJA fosse obrigada a publicar a resposta dos acusadores antes mesmo de julgada a ação. A abertura do contrato e a revelação de seus termos não poderiam ser mais positivas para a proteção do Tesouro.

Da leitura dos termos do contrato se depreende que:

• Os recursos obtidos de órgãos oficiais e de empresas privadas pela Gamecorp e pela Rede 21 são divididos meio a meio.

• O que oficialmente é apresentado como uma simples "venda de conteúdo televisivo" da Gamecorp ao canal de televisão tem os contornos de um compromisso bem mais profundo que beira a transferência de concessão pública. Isso é tolerado no mercado, mas não tem total amparo legal.

• A empresa de Fábio Luís pode chegar a ocupar 22 das 24 horas em que o canal fica no ar. Para um especialista em legislação societária e um advogado com atuação no mercado de televisão ouvidos por VEJA, não existe nada parecido no mercado. Esse grau de ocupação previsto no contrato para uma "terceira fase" configuraria a transferência de concessão pública.

A questão está longe de se aclarar completamente. As relações da emissora com o filho do presidente podem ser perfeitamente legais. É inescapável, porém, que o fato de o negócio ser azeitado por generosas fatias de dinheiro sob a guarda do Tesouro mas pertencente aos cidadãos – parte desses recursos controlada diretamente pela Presidência da República – torna a transação de interesse de todos os brasileiros. Foi justamente isso que o juiz Bonvicino reconheceu ao decidir abrir ao público os termos do contrato. Escreveu Bonvicino: "Convém ao interesse público que o contrato seja regido pelo princípio da publicidade porque um dos contratantes é filho do presidente da República (...) e a Rede 21 e o Grupo Bandeirantes são regidos por normas públicas". O processo contra VEJA em virtude das revelações que fez continua criminal e civilmente. A emissora se sente vítima de calúnia e difamação. Pede também uma indenização por danos a sua imagem que a revelação de detalhes de sua associação com o filho do presidente teria causado. Em qualquer país civilizado do planeta, quem estaria pressionado a dar explicações e ser processado seria a emissora que se associa ao filho do presidente – de maneira legal ou fraudulenta, não importa – para, juntos, atraírem verbas públicas. Desserviço ao Brasil é tratar o assunto como uma intromissão indevida na privacidade familiar do presidente ou como uma disputa comercial de um órgão de imprensa contra outro. O sujeito de tudo isso é o Tesouro, a riqueza da nação. Como se sabe, governos não produzem riqueza.

"Convém ao interesse público que o contrato seja regido pelo princípio da publicidade porque um dos contratantes é filho do presidente da República."
Juiz Régis Bonvicino, em despacho que negou o pedido de sigilo da Rede 21 sobre o contrato com a Gamecorp

O CONTRATO ABERTO

Embora a Rede 21, do Grupo Bandeirantes, sustente que apenas compra material produzido pela Gamecorp, produtora do filho de Lula, especialistas que analisaram o contrato consideram que a operação realizada entre as empresas pode caracterizar transferência de concessão pública. Isso porque, pelos termos da parceria, a Gamecorp poderá ocupar até 22 das 24 horas diárias de programação do canal, além de se responsabilizar por boa parte da receita da operação

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