Em Filhos da Esperança, a humanidade se
defronta com sua lenta e absoluta extinção
Isabela Boscov
Divulgação |
Owen, como o burocrata que tem de servir de Adão a uma nova Eva: sem o mais primitivo dos impulsos – a continuidade da espécie – não há civilização |
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A mais elegante e erudita das autoras policiais inglesas, P.D. James, de 86 anos, é também a que conhece mais de perto o assunto de que o gênero trata: casada com um médico que voltou esquizofrênico da II Guerra, ela se viu obrigada a virar provedora da família e iniciar uma carreira de servidora pública que culminaria, na década de 70, com um alto posto na divisão criminal do Ministério do Interior – a partir do qual lidava com autoridades policiais de todo o país e recrutava patologistas para os laboratórios de medicina forense ingleses. É uma experiência e tanto, e P.D. James fez uso dela não só em suspenses elaborados (e pessimistas) como também num livro que, à primeira vista, é um corpo estranho em seu currículo – a ficção científica The Children of Men (sem tradução brasileira), na qual a espécie humana está fadada a desaparecer não de forma súbita, por causa de um cataclismo, mas pouco a pouco, devido a um surto de infertilidade que perdura há anos. Com o romance, a escritora leva à posição central uma questão periférica de toda a ficção apocalíptica: como homens e mulheres se comportariam no dia-a-dia, e que escolhas morais fariam, se soubessem que não resta ninguém para herdar seu mundo? É essa também a idéia que o cineasta mexicano Alfonso Cuarón mantém firmemente em foco na adaptação Filhos da Esperança (Children of Men, Inglaterra/Estados Unidos, 2006), que estréia nesta sexta-feira no país.
Antes de mais nada, é preciso dizer que o título brasileiro inverte o sentido no qual o filme caminha. Está-se em 2027, e desde 2009 não se registra um nascimento no planeta. O mais jovem de todos os seres humanos acaba de ser assassinado por ter se recusado a conceder um autógrafo – os últimos a nascer são tratados como deuses e agem como "babacas", segundo a definição do burocrata Theodore Faron (Clive Owen). Faron mora na Inglaterra, um dos poucos países que ainda subsistem de alguma forma. O resto já foi para o vinagre, e as fronteiras britânicas vivem acossadas por multidões de imigrantes. Quanto mais estas incham, mais crescem também o número de policiais e o controle do Estado. O que o filme de Cuarón transmite melhor é a futilidade desses esforços. Sem um amanhã biológico, não há como nem por que conter a desintegração material e espiritual. Eis, então, o paradoxo de que tratam livro e filme: é no mais primitivo de todos os impulsos – o da continuidade da espécie – que está a razão de toda a civilização. Daí também o título original, que parafraseia o salmo 90: "E o Senhor disse: 'Voltem, filhos de Adão, ao pó do qual saíram'.".
Contra todas as suas crenças (ou falta delas), porém, o burocrata Faron se envolve com um grupo clandestino que localizou algo que ninguém mais imaginava ser possível – uma mulher grávida. É um milagre tão imenso quanto qualquer outro das Escrituras. Mas essa nova Eva, negra e imigrante ilegal, é um trunfo político para quem primeiro consiga pôr as mãos nela. Apesar da notável desenvoltura de Cuarón (conhecido por E Sua Mãe Também e pelo terceiro Harry Potter) como narrador e criador visual, Filhos da Esperança impõe um primeiro obstáculo ao espectador, comum a todas as distopias: é preciso comprar sua premissa pelo atacado. Superada essa barreira, ele se torna um filme dos mais instigantes, que não se cansa de explorar um dilema insolúvel: não há nada que o ser humano não seja capaz de contaminar, e nada também que ele não seja capaz de salvar.