Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 16, 2006

Eles já vivem sem petróleo


A Idade da Pedra não acabou por falta de
pedra. A era do petróleo também começou
a acabar mesmo antes de esgotadas as reservas
do combustível fóssil. Esta reportagem mostra
como vivem as pessoas que já deram o salto
rumo à vida com novas formas de energia


Carlos Rydlewski

Lailson Santos
A INOVAÇÃO ESTÁ NO AR
Oito em cada dez carros de passeio saem de fábrica no Brasil com motor bicombustível. Em aviões isso ainda é novidade, mas, desde 2004, a Neiva, unidade da Embraer, produz aviões a álcool. Diz o engenheiro Vicente Camargo, de 40 anos: "Nosso motor aumenta em 5% a potência do aparelho".


NESTA REPORTAGEM
Quadro:

Mundo busca uma saída para o Petróleo

ABAIXO:
ARTIGO:Colin J. Campbell

EXCLUSIVO ON-LINE
Em Profundidade: Petróleo

O aposentado Evaldo Silva Rodrigues mora em Arraial do Cabo, no litoral do Rio de Janeiro, numa área de preservação ambiental. Ali, mesmo os serviços públicos corriqueiros dificilmente chegam ao consumidor. Cansado de usar geradores de energia movidos a diesel, poluentes e barulhentos, Rodrigues apostou há três anos na energia eólica, beneficiando-se dos ventos abundantes da região. O projeto começou pequeno, com geração de eletricidade suficiente para manter apenas dez lâmpadas acesas. Mas se expandiu. Hoje, uma torre com um cata-vento instalado a 12 metros do chão – chamado de aerogerador – fornece quase metade do consumo de eletricidade da casa do aposentado. A rede pública já chegou a Arraial do Cabo, mas Rodrigues nem pensa em abandonar a geração eólica própria. "Quando acaba a luz na região, ficamos apenas eu e minha mulher vendo televisão", diz. A participação dos parques eólicos na matriz energética brasileira ainda é pequena. Representa 0,0018% do consumo nacional. Mas já permite que 180.000 famílias, como a do aposentado Rodrigues, dêem um tremendo salto para um mundo onde o caro e poluente petróleo tem participação apenas coadjuvante.

Gustavo Borges, medalhista olímpico de natação, seguiu caminho semelhante. Usa coletores solares para o aquecimento das quatro piscinas de duas academias que mantém em São Paulo e em Curitiba. O sistema também conta com eletricidade convencional e gás para garantir temperaturas da água que variam entre 29,5 e 32 graus. Mas, em dias quentes e ensolarados, o aquecedor solar dá conta do recado. "Em São Paulo, temos um aproveitamento melhor do que em Curitiba por causa do maior número de dias de sol, mas nas duas cidades a instalação dos equipamentos foi um bom negócio", diz o ex-atleta. "Gostei tanto do sistema que estou construindo uma casa no interior paulista com aquecimento solar da água."

O potencial brasileiro desse tipo de fonte também é especialmente elevado. No país, a energia solar média diária que incide em uma superfície horizontal é de 5 quilowatts-hora por metro quadrado (kWh/m2). Na Alemanha, que tem realizado grandes investimentos nessa fonte, é de apenas 3 kWh/m2. Assim como no caso da energia eólica, o potencial é grande, mas ainda pouco explorado. A participação da energia captada do Sol na matriz energética nacional é inferior a 1%. Mas, colocados lado a lado, os coletores usados para o aquecimento de água ocupariam uma área de 3 milhões de metros quadrados no país, o equivalente a duas vezes o espaço do Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Em Belo Horizonte, cidade com o maior número desses aparelhos no Brasil, um sistema para uma família de cinco pessoas custa 1 500 reais, investimento que pode ser recuperado em três anos. Além dos coletores, que são uma espécie de caixas metálicas ou plásticas que aproveitam a radiação para aquecer diretamente a água (do banho, da cozinha ou de piscinas), há também aparelhos chamados de módulos fotovoltaicos. Caros e importados, são capazes de fornecer no país 15 megawatts de energia de pico (a potência máxima obtida em condições ideais de radiação), suficientes para abastecer 5 000 residências.

Fabiano Accorsi
Lailson Santos
OS INVENTORES
Os técnicos da Magneti Marelli (à esq.) criaram uma versão de motor que suporta quatro combinações de combustíveis. Fábio Ferreira, da Bosch, participou do parto do sistema flex: "O pulo-do-gato foi o software, que analisa a fumaça do escapamento e identifica a mistura que está sendo usada no tanque do carro"

Exemplos como o do aposentado Rodrigues e o de Gustavo Borges são uma minoria. No entanto, revelam maneiras inovadoras de como os brasileiros podem aproveitar-se de uma situação invejável do país, num momento em que a sustentabilidade ambiental deixou de ser apenas um tema de conferências para tornar-se uma necessidade. O Brasil está na liderança de uma revolução. Em 2005, a oferta interna de energia no país atingiu 218,6 milhões de toneladas equivalentes de petróleo. Desse total, 97,7 milhões, ou 44,7%, eram renováveis. Essa proporção contrasta significativamente com a média mundial, que é de apenas 13,3%. Entre os países que compõem a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a média é de modestíssimos 6% para a participação das energias renováveis. Essa posição brasileira é resultado, principalmente, da participação das fontes hidrelétricas e do etanol na matriz energética nacional. Juntas, representam 28,9% da oferta total de energia.

A atual vedete brasileira no cenário mundial é o etanol. O Brasil é o maior produtor mundial de álcool combustível e o faz ao custo mais baixo do planeta – o litro do produto nacional, obtido a partir da cana-de-açúcar, custa 33 centavos de dólar, contra 43 centavos de dólar do equivalente americano, feito do milho. A demanda (interna e externa) cresce permanentemente. Em novembro, foram licenciados 173.987 veículos no Brasil, 81,4% deles com motor bicombustível. Eram 3% em 2003. Alguns fatos mostram a escala desse processo e suas tendências. Ao fim de um dia de trabalho, um taxista em uma cidade como São Paulo gasta até 18 litros de álcool. Tal nível de consumo exige 7,3 hectares de cana-de-açúcar por ano, o equivalente a quase sete campos de futebol.

Até aviões são produzidos com motor a álcool. A primeira aeronave de série no mundo a sair da fábrica com certificado para voar com esse tipo de combustível foi o Ipanema, construído pela Neiva, unidade da Embraer em Botucatu (SP). Inovações como essa cercam o setor sucroalcooleiro de prognósticos otimistas. A produção de álcool no Brasil deve dobrar em dez anos, passando dos 16 bilhões de litros em 2005 para 36,8 bilhões de litros em 2015. No mesmo período, as exportações podem passar de 2,6 bilhões de litros para 28,4 bilhões de litros. Existe um total de 89 usinas em projeto ou em construção no país. Elas devem entrar em operação até 2012 e representam um investimento de 12 bilhões de dólares.

Fabiano Accorsi
CÉLULAS DO FUTURO
Gerhard Ett, da Electrocell, de São Paulo, quer vender a partir de 2007 células de combustível à base de hidrogênio para setores que precisam de fornecimento com alto grau de confiabilidade, como hospitais e bancos

A cana-de-açúcar, planta que chegou ao Brasil pelas mãos do fidalgo português Martim Afonso de Souza, em 1532, é ainda um produto com um pendor à eficiência e à versatilidade. A queima do seu bagaço produz energia elétrica. Hoje, existem 335 usinas no país e quase todas geram a própria eletricidade a partir da queima da sobra da cana produzida por elas. A maioria chega a vender o excedente. A oferta brasileira dessa modalidade de bioeletricidade chega a 1.642 megawatts (MW) de potência instalada, o suficiente para abastecer uma área com 3,2 milhões de habitantes, quase equivalente à população do Uruguai.

O físico Amory B. Lovins, responsável pelo Rocky Mountain Institute (RMI), um dos principais centros de pesquisa ambiental do planeta, no Colorado, Estados Unidos, acredita que o sucesso do etanol coloca o Brasil como referência mundial de uma das três revoluções que estão transformando os sistemas globais de energia. São elas o uso cada vez mais eficiente dos recursos disponíveis, a descentralização no fornecimento e, por fim, o abastecimento renovável. "O Brasil é o líder dessa terceira frente de transformações e pode assumir o primeiro lugar também nas outras duas", disse Lovins a VEJA. O especialista acredita ainda que o mundo em geral e o Brasil em particular têm muito a ganhar com os "negawatts" – como denomina a eletricidade economizada. Ela pode resultar de fábricas com grandes janelas, por onde possam entrar luz e calor, ou mesmo lâmpadas compactas fluorescentes (cinco vezes mais eficientes do que as incandescentes, que consomem 50% da energia de iluminação comercial do país e 90% da residencial).

Outra aposta brasileira no campo da agroenergia é o biodiesel. Trata-se de um combustível que pode ser extraído de ampla variedade de plantas – soja, mamona, dendê, girassol, amendoim e algodão. Mas é adequado a veículos grandes, com motores a combustão. Os carros de passeio, que rodam com álcool ou gasolina, usam ignição por centelha. O Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel, criado pelo governo em 2004, prevê a adição obrigatória de 2% desse combustível ao diesel a partir de 2008 e o aumento desse porcentual para 5% em 2013. Mas, para cumprir essas metas, a primeira grande tarefa do governo é organizar a rede de produção do novo combustível.

O Brasil tem treze usinas autorizadas pela Agência Nacional do Petróleo (ANP), instaladas em nove estados. Juntas, elas têm capacidade para produzir 445 milhões de litros de biodiesel por ano. Para abastecer a frota nacional e suprir a demanda a ser criada dentro de dois anos, serão necessários 840 milhões de litros anuais do produto. A ANP acredita que a construção de 25 usinas, cujo processo está em andamento, permitirá que o cronograma seja cumprido. Em tese, com o biodiesel será possível reduzir a despesa com a importação do óleo diesel, o que proporcionaria uma economia de divisas da ordem de 350 milhões de dólares por ano. A Alemanha é o maior produtor e consumidor mundial de biodiesel. O país possui centenas de postos que vendem o combustível puro, que dispensa o diesel mineral.

Oscar Cabral
VAIVÉM PROMISSOR
No Rio, o professor Segen Estefen, da UFRJ, criou um sistema que capta energia das ondas e deve ser construído em 2007, no litoral do Ceará

A professora Suzana Kahn Ribeiro, da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acredita que o mundo vai sair da "era do petróleo" para entrar na "era da diversidade energética". Esse processo avança em velocidade considerável e com novidades permanentes saindo dos laboratórios. "Não há dúvida de que passamos pelo período com o mais elevado nível de inovação tecnológica da história do setor energético", disse a VEJA Daniel Yergin, presidente da consultoria Cambridge Energy Research Associates (Cera) e autor do clássico The Prize (O Prêmio), sobre a indústria do setor, livro com o qual ganhou o Prêmio Pulitzer, em 1992.

Técnicos e cientistas prevêem cada vez mais a possibilidade de o fim do consumo do petróleo não se dar por causa do esgotamento de suas fontes naturais. Ocorrerá, sim, mas pelo aniquilamento da capacidade do planeta em absorver os gases provenientes de sua combustão – o dióxido de carbono, por exemplo, é apontado como o grande vilão do efeito estufa, responsável pelo aquecimento global. Somado às abruptas oscilações de preço e aos impasses geopolíticos intrínsecos a essas fontes, o problema ambiental só confere urgência ainda maior à mudança da matriz energética global. Daí a importância da passagem cada vez mais rápida das pessoas para o mundo pós-petróleo. Atualmente, os combustíveis fósseis são responsáveis pelo fornecimento de 75,6% da energia mundial. O que se pretende é atenuar ao máximo essa participação, ampliando a cota de fontes limpas, renováveis e que não coloquem em risco a segurança dos países. A tarefa, contudo, representa um dos maiores desafios que a humanidade já enfrentou, tanto no aspecto técnico e científico como no político e econômico. Ponto para as pessoas e empresas que já deram o salto rumo à vida com novas formas de energia.

O OUTRO DIESEL

Lailson Santos
O pesquisador Dabdoub, da USP, já testa a adição de 30%
de biodiesel ao diesel comum em caminhões no interior de SP

Um programa criado pelo governo federal prevê a adição obrigatória em todo o Brasil de 2% de biodiesel, feito a partir de óleos vegetais, ao tradicional óleo diesel. Para cumprir essa meta, a partir de 2008 será preciso dobrar a capacidade atual de produção do combustível. O engenheiro químico Miguel Dabdoub, do Laboratório de Desenvolvimento de Tecnologias Limpas (Ladetel), da USP, em Ribeirão Preto (SP), é um dos pioneiros nesse ramo de pesquisa e um entusiasta da tecnologia no Brasil. Ele acredita que será possível substituir totalmente o diesel tradicional pelo equivalente vegetal. Em países como a Alemanha, esse processo de troca já começou. "No Brasil, a substituição só vai depender do desafio de produzir óleos vegetais na escala adequada, pois, sob o aspecto técnico, não há empecilho", diz. O pesquisador já testa uma mistura de 30% de biodiesel, produzido a partir de soja e mamona, em caminhões de uma distribuidora de refrigerantes do interior paulista.

PIRUETAS DO CONTADOR

Mirian Fichtner
Hans Rahn, no teto do prédio, em Porto Alegre, entre painéis fotovoltaicos: em domingos com sol, até sobra energia

Em domingos ensolarados, sobra energia no edifício de quatro andares em Porto Alegre (RS) onde moram o eletrotécnico alemão Hans Dieter Rahn e outras nove pessoas. Rahn, há 55 anos radicado no Brasil, instalou no prédio um sistema que converte a radiação solar em energia elétrica. O modelo é formado por 45 painéis fotovoltaicos que ocupam uma área de 40 metros quadrados. Durante a semana, quando estão abertos o escritório e a loja que funcionam no prédio, as placas fornecem 20% do consumo total de energia. No Brasil, existem perto de vinte sistemas semelhantes ao de Rahn. São poucos porque são caros. O eletrotécnico gastou 40.000 reais com os equipamentos. Uma instalação convencional custaria 1.000 reais. Rahn espera zerar o investimento em quinze anos. "Vale a pena dar esse passo para o futuro", diz o eletrotécnico.

Nélio Rodrigues/1º Plano
Equipamento simula raios solares para teste de coletores em Belo Horizonte: só há seis aparelhos desse tipo no mundo

Apesar de os painéis fotovoltaicos não serem comuns, outro aparelho, o coletor de energia solar usado no aquecimento de água, é popular em algumas regiões do Brasil. Em Belo Horizonte, a cidade com o maior número desses equipamentos no país, um sistema para uma família de cinco pessoas custa 1.500 reais, um investimento que é recuperado em três anos. "O governo devia criar uma bolsa solar", diz Elizabeth Pereira, coordenadora do Green Solar (Centro Brasileiro para Desenvolvimento da Energia Solar Térmica), com sede na PUC-MG. Há 3 milhões de metros quadrados desses coletores no Brasil, numa área equivalente a dois parques como o do Ibirapuera, em São Paulo. Oitenta por cento deles em 600 000 residências. Os 20% restantes ficam em hotéis, hospitais e restaurantes.

COM O VENTO A FAVOR

Mirian Fichtner

QUIXOTE MODERNO
As torres de 98 metros chamam atenção na usina eólica de Osório (RS), mas a tecnologia ainda é uma promessa

O Brasil está construindo uma usina de torres eólicas que será a maior da América Latina e uma das quatro maiores do mundo. Trata-se do Parque Eólico de Osório, no litoral norte do Rio Grande do Sul. São 75 torres de 98 metros de altura, cada uma equivalente a um prédio de 25 andares. Elas sustentam aerogeradores ao longo de filas de até 12 quilômetros de extensão. O complexo, que deve entrar em operação total em janeiro de 2007, terá capacidade instalada de 150 megawatts, o suficiente para atender ao consumo residencial de 650 000 pessoas. O Brasil ainda faz uso incipiente desses cata-ventos gigantes. A energia eólica representa 0,0018% do consumo de energia nacional. São somente 180 megawatts instalados, que podem atender 180 000 famílias. Mas a tecnologia tem grande potencial no país. Levantamento publicado em 2001 pelo Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Cepel) indica que o Brasil teria condições de gerar 143 500 megawatts de energia a partir do vento, o correspondente à capacidade de onze usinas como Itaipu. Atualmente, a energia eólica representa 0,8% do mercado mundial de eletricidade. A expectativa é que alcance um terço da energia elétrica consumida no planeta em 2030.

Com reportagem de Ana Paula Baltazar, Frances Jones, Morgana Campos,
Rodrigo Squizato, Úrsula Alonso Manso e Yuri Vasconcelos


ARTIGO:Colin J. Campbell*

O Brasil e o fim
da era do petróleo

"Em 1981, o mundo passou a usar mais
petróleo do que descobria. Esse gap está
aumentando. Em 2005, para cada cinco
barris consumidos, somente um foi encontrado"

NESTA EDIÇÃO
Eles já vivem sem petróleo
EXCLUSIVO ON-LINE
Em Profundidade: Petróleo

O mundo não corre o risco de ficar sem petróleo tão cedo. O que enfrentamos hoje é o fim da primeira metade da era do petróleo. Ela começou há 150 anos, com a perfuração de poços no litoral do Mar Cáspio e na Pensilvânia. A energia barata, conveniente e abundante que esse combustível fóssil fornecia impulsionou o crescimento da indústria, do transporte, do comércio e da agricultura. A população mundial expandiu-se exatas seis vezes e criou volumes imensos de capital financeiro. Foi isso que deu origem à economia moderna, definindo maneiras de administrar dinheiro, investimentos e finanças nessas circunstâncias específicas. Esse óleo, em suma, acabou por controlar toda a estrutura do mundo moderno, seus negócios, sua política.

Mas o petróleo é um recurso finito, formado no passado geológico. A maior parte da produção atual vem de dois breves períodos de aquecimento global, há 90 milhões e 150 milhões de anos. A pergunta vital é a seguinte: a que distância estamos do fim da curva de seu esgotamento? O primeiro passo para responder a essa questão é saber quanto já foi descoberto até agora e quando essas descobertas ocorreram. Parecem questões simples, mas, quando nos aprofundamos no problema, descobrimos que essas indagações estão cercadas por um campo minado de confusão e desinformação. O primeiro ponto de discórdia é sobre o que medir. Existem muitas categorias de petróleo, cada uma com um custo peculiar e, acima de tudo, um perfil específico de esgotamento. Algumas são baratas, fáceis e rápidas de produzir. Outras são precisamente o oposto.


Nelson Perez/Valor
PLATAFORMA DA PETROBRAS:
a empresa colhe bons frutos por ter apostado na prospecção em águas profundas

Além da discussão em torno do que medir, as informações sobre as reservas existentes também geram grande controvérsia. Reservas são ativos financeiros e, muito corretamente, estão sujeitas a regras rígidas de comercialização. Sob esse ponto de vista, foram criadas para impedir o exagero fraudulento na divulgação de dados. Sua subavaliação passou a ser aprovada como um sinal de louvável prudência comercial. Na prática, as empresas petrolíferas informavam apenas o que precisavam informar para apresentar resultados financeiros satisfatórios. Como conseqüência, as reservas informadas foram sendo progressivamente revisadas para cima, dando a impressão muito confortante, mas ilusória, de crescimento firme, normalmente atribuído à tecnologia, quando se tratava sobretudo de um artifício da divulgação de relatórios.

O fato é que, na medida do possível, tudo indica que a descoberta mundial de petróleo esteve em queda desde meados da década de 1960. Portanto, não há um bom motivo para esperar que a atual tendência de declínio mude de direção. Além do mais, em 1981, o mundo começou a usar mais petróleo do que descobria, e essa diferença está aumentando. Em 2005, para cada cinco barris consumidos, só um foi encontrado. Normalmente, a produção de petróleo começa a cair depois que metade do total disponível é extraída. Hoje, perto de cinqüenta países produzem menos do que no passado.

É por isso que a segunda metade da era do petróleo está nascendo. Os altos preços em tempos recentes marcam o início dessa nova época, na qual não há capacidade de reserva material nem esperança de assegurá-la em um nível significativo. Existem riscos de que a transição para o declínio seja um período de grande tensão internacional, que pode levar alguns países a tentar obter o controle das reservas remanescentes por meios militares.

O caso brasileiro – O Brasil não pareceu, a princípio, ser um país de grandes jazidas para as empresas petrolíferas internacionais. Isso estimulou o governo a criar a Petrobras, que descobriu alguns campos modestos na Amazônia e em regiões vizinhas. Posteriormente, a atenção voltou-se para o mar, a fim de verificar se as áreas em águas profundas brasileiras teriam características semelhantes aos locais de prospecção no litoral da África, do outro lado do Atlântico. A empresa venceu os enormes desafios tecnológicos para atuar a mais de 500 metros de profundidade e foi recompensada com a descoberta de alguns campos gigantes de petróleo.

Essas reservas surgiram a partir de lagos que se formaram em depressões. Eles apareceram quando o Atlântico começou a se abrir, cerca de 120 milhões de anos atrás, e as algas proliferaram nas águas aquecidas pelo sol. Os resíduos orgânicos depositaram-se nas profundezas estagnadas do mar, onde foram enterrados por sedimentos mais jovens trazidos pelas águas dos rios. A água do mar ocasionalmente invadia os lagos e deu origem a camadas de sal que ajudaram a selar o material orgânico até que ele fosse aquecido o bastante para ser convertido em petróleo e gás. Mais tarde, há cerca de 60 milhões de anos, areia e argila precipitaram-se, de modo caótico, ao longo dos declives continentais, mas foram novamente suspensas por correntes litorâneas e redepositadas na forma de dunas de areia, formando excelentes reservatórios para o petróleo. A combinação dessas circunstâncias é realmente impressionante e significa que existem limites para a formação do petróleo.

As informações disponíveis sugerem que a produção do Brasil atingirá o auge de 5 milhões de barris por dia em 2011 (a estimativa da Petrobras é de 2,3 milhões de barris por dia em 2010). A partir daí, começará a declinar, de tal modo que o país deixará de ser auto-suficiente, mantidos os atuais níveis de consumo, por volta de 2020. Nessas circunstâncias, faria sentido que o governo fortalecesse a Petrobras, talvez comprando empresas estrangeiras, com a finalidade de preservar o máximo possível de reservas para o povo brasileiro – atualmente 187 milhões de pessoas, cada uma consumindo em média 3,6 barris por ano.

A segunda metade da era do petróleo será caracterizada por uma queda no suprimento do insumo e de tudo o que depende dele – o que inclui, por conseqüência, o capital financeiro. Isso pode anunciar o fim da economia como ela é entendida atualmente, o que seria acompanhado por uma profunda depressão. É impossível prever o curso dos eventos porque a transição para o declínio é uma descontinuidade sem precedentes e de proporções históricas, já que nunca antes um recurso tão importante quanto o petróleo se tornou escasso sem a perspectiva de um substituto melhor. Todos os países e todas as comunidades enfrentam as conseqüências dessa nova situação.

Não existe uma solução no sentido de descobrir petróleo e gás suficientes para prolongar o período passado, mas certamente existem respostas por meio das quais os países podem se planejar e se preparar. Não é difícil adotar alguns procedimentos úteis:

Avaliar a situação real corretamente para evitar ser levado ao erro por previsões enganosas anunciadas por organizações internacionais, em parte por motivos políticos.

Realizar um amplo programa de educação pública, para que todos possam tomar consciência sobre a questão da energia.

Estimular o rápido desenvolvimento de energias renováveis, de marés, ondas, sol, vento e fontes hidrelétricas, inclusive a produção de cultivos energéticos, como o Brasil tem sido pioneiro com sucesso.

Reavaliar a opção nuclear, incluindo, por exemplo, os novos sistemas em pequena escala resfriados a gás e protegidos contra falhas.

Promover um protocolo internacional por meio do qual os países reduzam as importações de modo correspondente à taxa mundial de esgotamento, atualmente em torno de apenas 2,5% ao ano.

Esse não é necessariamente um cenário de apocalipse, uma vez que existem soluções, mas que envolvem mudanças radicais de estilo de vida. Certamente, os países que estão mais preparados para enfrentar essa segunda metade da era do petróleo terão uma grande vantagem competitiva. Mas, ainda assim, a transição promete ser um período de grande tensão.

* Colin J. Campbell é Ph.D. pela Universidade de Oxford. Atualmente, dirige a Association for the Study of Peak Oil & Gas (ASPO), com sede na Irlanda. A entidade está presente em catorze países e monitora a produção e o mercado mundial de energia de origem fóssil

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