do vôo 1907
VEJA fotografou e levantou a história de vida
dos dois jovens controladores que estavam
diante da tela do radar em Brasília na hora
do maior acidente aéreo ocorrido no Brasil
Policarpo Junior e Ana Araújo (fotos)
Fotos Ana Araujo | |
Jomarcelo dos Santos (à esq.) e Lucivando de Alencar: eles estavam diante da tela do radar antes, durante e depois do acidente |
Logo que o Boeing da empresa aérea Gol se espatifou na selva amazônica, no dia 29 de setembro, começaram a vir à tona as histórias das 154 vítimas. No vôo estavam a médica que viajava com o filho de 1 ano e 6 meses, para acompanhar o casamento do irmão, e a jovem psicóloga que faria uma visita-surpresa à mãe em Belo Horizonte. O estudante de medicina que viajava para reservar a igreja onde se casaria agora em dezembro e o engenheiro que, com doze amigos, voltava de uma pescaria nos rios da Amazônia. Em seguida, começaram a aparecer as histórias dos sobreviventes, tripulantes e passageiros do Legacy, o jato que se chocou com o Boeing a 37.000 pés de altura mas conseguiu pousar, são e salvo, 25 minutos depois. Seus pilotos, os americanos Joseph Lepore e Jan Paul Paladino, foram detidos e só receberam autorização para deixar o país há duas semanas. Passados quase três meses do acidente, falou-se bastante dos personagens da tragédia que se encontravam no ar – as vítimas do Boeing e os sobreviventes do Legacy. Mas quase nada se disse sobre os personagens da tragédia que estavam em terra.
Quem eram os controladores de vôo? Quem eram os homens que, na torre de controle em Brasília, estavam diante da tela do radar nos minutos fatídicos em que se armava nos céus da Amazônia o maior desastre da história da aviação brasileira? Eram dois jovens militares, de 27 e 28 anos, um nascido no Ceará e outro no Maranhão, que ganham 1.810 reais por mês, cursaram até o ensino médio, moram em pequenos apartamentos de classe média baixa na capital federal, não sabem falar inglês e lidam, dia e noite, com a angústia de ter estado na posição de evitar a tragédia – ou pelo menos de não contribuir para ela. Um deles é Jomarcelo Fernandes dos Santos, 27. Foi Jomarcelo quem acompanhou o Legacy até as 16h15, quando o jato já havia passado por Brasília e deveria ter baixado de 37.000 para 36.000 pés. O outro é Lucivando Tibúrcio de Alencar. Lucivando completou 28 anos na quarta-feira passada, mas não fez festa alguma. Foi ele quem monitorou o vôo das 16h15 em diante. Ele estava diante da tela do radar quando, às 16h57, o Legacy e o Boeing se chocaram em pleno ar.
FAB |
Os destroços do Boeing da Gol, que levava 154 pessoas a bordo: apurando as responsabilidades |
Os dois ainda não voltaram a exercer a função de controlador de vôo em Brasília – e nenhum quer falar publicamente sobre o acidente. Abordado por VEJA à entrada do prédio onde mora, Jomarcelo dos Santos não quis posar para fotografia e se limitou a dizer que não poderia falar. Seu colega Lucivando de Alencar também não quis dar entrevista. Disse apenas: "Só posso dizer que estou do lado da verdade. A Justiça vai investigar e no momento oportuno vou me defender. Se eu disser alguma coisa mais, posso ser punido". É compreensível a apreensão dos dois. Como militares – ambos têm a patente de terceiro-sargento –, eles podem sofrer sanções disciplinares caso dêem entrevista à imprensa. É esse o código da caserna. Mas, mais do que uma punição, eles temem ser apontados como culpados pela queda do Boeing e, por extensão, pela morte de 154 homens, mulheres e crianças. É um fardo imenso para qualquer pessoa carregar. Mesmo que as investigações venham a provar que eles não deram sua parcela de contribuição à seqüência de erros que levou à tragédia sobre a Amazônia, os dois controladores já tiveram a vida virada do avesso.
Nas primeiras semanas depois do acidente, Lucivando de Alencar, abatido com a tragédia, perdeu peso e isolou-se dos amigos. Desativou seu telefone fixo, trocou o número do celular e mudou-se para a casa de um amigo. Durante a licença médica que lhe foi concedida, conforme a praxe da Aeronáutica para ajudar na recuperação de controladores envolvidos em acidentes, Lucivando tratou-se com uma psicóloga de Portugal, especialista em lidar com traumas de operadores de vôo. Quando a licença médica foi encerrada, pediu mais quinze dias e, terminado esse prazo, entrou de férias para ficar com a família, em Fortaleza. Na semana passada, voltou a Brasília para depor em um inquérito militar que investiga a greve branca dos controladores. Ele tinha planos de retornar ao Ceará assim que se desincumbisse da tarefa. Não quer mais voltar a trabalhar no controle aéreo em Brasília e já confessou a um amigo que, se tivesse condições financeiras, pediria baixa da Aeronáutica. A um amigo que conversou com VEJA, Lucivando chegou a comentar que pretendia pedir transferência para Fortaleza.
Andre Dusek/AE |
Augusto Nardes, do TCU, autor de um relatório sobre o caos aéreo no país: a crise não é obra do acaso |
Caçula de pais separados, uma dona-de-casa evangélica e um maquinista de trem aposentado, Lucivando teve uma infância modesta. Seu pai, Antônio Soares de Alencar, 54 anos, orgulha-se de nunca ter colocado os filhos para trabalhar antes que se encaminhassem na vida. Lucivando tem duas irmãs. A mais velha, Luciana, de 32 anos, mora no Recife. Virou dona-de-casa depois que se casou com um próspero pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, que acabou espalhando sua influência religiosa para toda a família – inclusive Lucivando, que hoje é um dedicado fiel da Igreja Universal. A segunda irmã, Lucivânia, 29, fez o curso de enfermagem. Casada com um taxista, tem uma filha de 1 ano e mora nos fundos da casa da mãe, num bairro modesto de Fortaleza. Lucivando tem uma relação muito próxima com a mãe, Sônia Tibúrcio, 48. "A vida dele é a mãe", conta Vânia Pinto, vizinha da família há duas décadas. Agora mesmo, Lucivando está ajudando a mãe a reformar a casa, que será a única da rua com azulejos no piso e nas paredes.
Com gosto por matemática, Lucivando sempre quis trabalhar com computação ou ser engenheiro, mas as dificuldades da vida levaram-no a optar pela carreira militar. Em 1999, depois da terceira tentativa, conseguiu ser aprovado no curso de sargento da Aeronáutica. Foi estudar na Escola de Especialistas, em Guaratinguetá, no interior de São Paulo. Na turma de 400 alunos, não se destacou em nenhuma disciplina – e acabou ganhando fama de azarado. Seu sonho era comprar um automóvel. Economizou meses a fio e, finalmente, adquiriu um carro de segunda mão, mas pouco depois descobriu que o veículo era roubado. Resultado: ficou sem o carro e sem o dinheiro duramente poupado. Em dezembro de 2000, já formado como sargento e especializado em controle de vôo, foi transferido para a torre de Brasília, seu primeiro e único posto até agora. Hoje, com seis anos de trabalho, Lucivando tem uma ficha sem máculas na Aeronáutica – e possui um carro. É dono de um Gol ano 2002.
Seu colega Jomarcelo dos Santos tem uma biografia muito semelhante na origem humilde – e no abatimento atual. Nascido em São João dos Patos, uma pequena cidade no interior do Maranhão, Jomarcelo sempre perseguiu a carreira militar. Em 1998, foi morar com uma tia em Goiânia, onde estudou durante um ano para fazer o concurso para sargento. No ano seguinte, foi aprovado em quinto lugar. Assumiu seu cargo de controlador em Brasília em 2003. É casado, tem uma filha pequena e, católico, vai à missa todos os domingos. Seus pais, uma dona-de-casa e um comerciante, hoje moram na área rural da cidade de Paraibano, no Maranhão. Ele não gosta de falar sobre a tragédia do vôo 1907 nem mesmo para os parentes. A tia com quem morou em Goiânia, Joana Ferreira dos Santos, conta que esteve com o sobrinho alguns dias depois do acidente. Entre uma amenidade e outra, a tia, sem se dar conta de que o sobrinho podia ter tido algum envolvimento no desastre, perguntou-lhe desavisadamente se estava trabalhando naquele dia. "Sim", respondeu Jomarcelo, secamente. A exemplo de seu colega Lucivando, ele também trocou o número do telefone fixo. E deixou de atender o celular.
Os dois, Lucivando e Jomarcelo, estavam diante da tela do radar antes, durante e depois do acidente, mas isso não significa que tenham parcela de culpa na tragédia. Em depoimentos prestados à Polícia Federal, eles disseram que o acidente decorreu de falhas no equipamento. Jomarcelo contou que, quando o Legacy passou por Brasília, momento em que deveria baixar de 37.000 para 36.000 pés, o console à sua frente passou a indicar que a descida para o nível inferior fora feita. Assim, Jomarcelo transferiu o comando para Lucivando sem mencionar nenhuma anormalidade. Lucivando, por sua vez, logo depois de assumir o posto, percebeu que no console a indicação da altitude do Legacy apontava dois níveis diferentes simultaneamente – 36.000 e 38.000 pés. Diante disso, tentou fazer contato com os pilotos do Legacy para certificar-se da verdadeira altitude, mas, segundo eles disseram aos policiais, novas falhas no equipamento impediram que se estabelecesse a comunicação entre a torre em Brasília e a cabine do Legacy (veja cronologia). A versão dos controladores ainda está sendo investigada, mas ambos e seus colegas de trabalho estão apreensivos com a possibilidade de ser responsabilizados pelo acidente. "A corda sempre arrebenta no lado mais fraco", diz o advogado Normando Augusto Cavalcanti, contratado para defender todos os controladores direta ou indiretamente envolvidos no caso.
Fabio Motta/AE |
O ministro Waldir Pires, da Defesa: desmentido em público sobre o bloqueio de verbas |
De certa forma, ainda com a investigação em curso, os pilotos do Legacy já foram responsabilizados. Na semana passada, a Polícia Federal enviou um relatório preliminar à Justiça dizendo que os dois pilotos, já indiciados pela polícia, agiram com negligência. O delegado Ramon Almeida da Silva, responsável pelo inquérito, concluiu que a dupla voou durante quase uma hora com o transponder desligado e não se deu conta disso. O equipamento, que fornece aos controladores em terra a altitude precisa da aeronave e também é capaz de alertar outros aviões nas imediações sobre o risco iminente de uma colisão, só foi acionado pelos pilotos do Legacy dois minutos após a colisão com o Boeing. O delegado, com base em diálogos ocorridos na cabine e gravados na caixa-preta, desconfia que os pilotos sabiam que o aparelho estava desligado. O delegado só não sabe se o transponder foi desligado de propósito, por desatenção ou por falha no próprio equipamento. Mas, mesmo assim, achou que os pilotos foram negligentes por ter viajado tanto tempo com um equipamento vital para segurança de vôo fora do ar. Em entrevista dada à rede americana de televisão NBC, os pilotos responsabilizaram os controladores de vôo pela tragédia.
O acidente, além de ter sido o maior da aviação brasileira, também deflagrou uma crise aérea que parece não ter fim – e, de novo, parece que os controladores de vôo estão no meio. Desde que eles começaram uma greve branca, em protesto contra as precárias condições de trabalho, a situação nos aeroportos nunca mais voltou ao normal. Houve um apagão aéreo no feriado de 2 de novembro, mas no último dia 5 de dezembro o país viveu o maior caos da história, com vôos atrasando mais de trinta horas. De lá para cá, a situação melhorou, mas freqüentar os aeroportos brasileiros continua um calvário (veja quadro na pág. 146). Para entender a crise, até o Tribunal de Contas da União entrou em cena. Na semana passada, o ministro Augusto Nardes, do TCU, divulgou o resultado de uma auditoria-relâmpago no sistema de tráfego aéreo brasileiro. Planejada, executada e relatada em dezoito dias, a auditoria diz que a crise não é obra do acaso. "É obra da má gestão, da sucessão de equívocos, da indolência, da incapacidade de expandir o setor e do contingenciamento de recursos", diz o relatório. O ministro da Defesa, Waldir Pires, ficou irritado com o diagnóstico. Disse que não havia nem falta de investimentos por parte do governo nem bloqueio de verbas. Em audiência no Congresso, porém, o ministro viu sua tese ruir – à sua frente e por um subordinado. O brigadeiro Neimar Barreiro, secretário financeiro da Aeronáutica, exibiu publicamente a lista de todos os bloqueios de verbas. Como se vê, nem tudo pode ser debitado na conta dos Lucivandos e dos Jomarcelos das torres de controle.
Com reportagem de Alexandre Oltramari,
de Brasília, e Ricardo Brito, de Fortaleza
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