Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, dezembro 04, 2006

A doença infantil da diplomacia

A doença infantil da diplomacia

editorial
O Estado de S. Paulo
2/12/2006

Existe, visível a olho nu, uma linha de continuidade entre o padrão de comportamento do presidente Lula no plano interno e a sua compreensão do papel que lhe cabe desempenhar como chefe de Estado na arena internacional. Mas essa coerência não chega a ser propriamente uma virtude, a menos que se considere virtuosa a sua crença de que governar - e fazer política externa - é discursar. Com isso não se pretende subestimar o poder da palavra como argamassa para a construção do entendimento, a formação de maiorias políticas e a pavimentação do caminho para decisões de interesse nacional. Tampouco se trata de desdenhar da força simbólica das situações concebidas para favorecer o enunciado de propósitos, a mobilização pelo verbo. Na era da diplomacia pessoal, seria pueril criticar as viagens ao exterior dos dirigentes nacionais.

O problema é que a falta de lastro dos eventos a que Lula comparece, combinada com a falta de substância de suas manifestações, nos plenários ou em encontros tête-à-tête, confina a desejada aparição de um líder brasileiro no radar da mídia estrangeira ao que o jargão jornalístico anglo-americano denomina, depreciativamente, photo-op, uma encenação para as lentes sempre volúveis da mídia e que por isso mesmo se esgota em menos tempo do que leva dizer “oportunidade para fotos”. Atente-se para o evento - a rigor, o não-evento - a que o presidente Lula acaba de comparecer em Abuja, na Nigéria, apesar da dolorida torção que o obrigou a se deslocar em cadeira de rodas. Para a sua recuperação, quanto mais não fosse, melhor teria sido que ficasse em repouso no Alvorada, pensando em como destravar a economia sem desandar as finanças públicas.

Em primeiro lugar, porque a pomposamente intitulada Cúpula África-América do Sul foi a esqualidez que era de prever. Reuniu representantes de 66 países, dos quais, no entanto, apenas 25 chefes de Estado. Da América do Sul, guardaram-se de ir, entre outros, os presidentes da Argentina, Uruguai, Chile e Venezuela. Dos cinco que foram, dois, o do Paraguai e o da Guiana, viajaram de carona no Airbus do brasileiro. Em segundo lugar, e principalmente, porque, na esfera das relações internacionais, perde pontos, nos quesitos atenção e respeito político, o governante - e por extensão o seu país - cuja figura é associada a irrelevâncias, do tipo do ralo café da manhã de Lula com o ditador líbio Muamar Kadafi. O pensamento positivo, de que o presidente é adepto convicto, não tem o poder de mudar esse resultado.

“Quem faz política sabe que só o fato de reunirmos aqui (na Nigéria) figuras importantes demonstra que o século 21 será muito melhor”, afirmou Lula. Como se diz em linguagem coloquial, só porque ele quer. O reunismo - ou “a mania dos grandes encontros”, nas palavras do presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), embaixador José Botafogo Gonçalves, na lúcida entrevista publicada ontem neste jornal - é uma espécie de doença infantil da diplomacia. Ocupa os dignitários que, por vaidade ou desfastio, se abalam a participar das conferências de cúpula, porém é um paupérrimo substituto para uma política externa robusta, ainda mais quando lhe falta uma estratégia capaz de se manter em pé porque sintonizada com as realidades do globo. O anverso da moeda é o voluntarismo. No regime militar, o terceiro-mundismo do Itamaraty, movido por uma visão ufanista das coisas, levou o governo Médici a abrir 10 embaixadas na África. “Aí faltou fôlego, não houve continuidade”, lembra Botafogo. “Foi uma energia desperdiçada.”

Mas o pior é que o presidente Lula, mesmo sem nenhum fôlego nem para chegar aos 5% de crescimento econômico, promete continuidade: pretende criar um “bolsa-família” para os países pobres, isentando 50 deles de tarifas de importação, 34 dos quais africanos. Trata-se de um gesto humanitário. No entanto, diante de uma questão que vem revoltando o mundo civilizado - a catástrofe na região sudanesa de Darfur, cenário de crimes continuados contra a humanidade -, o Brasil se mostra menos humanitário, abstendo-se na ONU de exigir do governo muçulmano de Cartum o elementar: a cessação dos massacres e a punição das autoridades acumpliciadas com os atos de selvageria da milícia Janjaweed que transformaram 2,5 milhões de pessoas em refugiados no seu próprio país. A abstenção foi festejada pelos delegados do Sudão como “reflexo da política do governo Lula em relação à África”. Vale por um epitáfio.

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