O processo Dreyfus |
Artigo - Paulo Brossard |
O Estado de S. Paulo |
2/12/2006 |
A propósito do centenário da reabilitação do capitão Alfred Dreyfus, o Estado de domingo, em seu caderno Cultura, estampou excelente artigo da professora Leda Tenório da Motta, lembrando o que foi a condenação e o que representou a carta aberta de Émile Zola ao presidente da França. Observou a autora que “se a data passou praticamente despercebida entre nós ao longo do ano em curso... vem sendo objeto da maior atenção dos franceses, desde janeiro”. E não lhe faltava razão, pois a França pagou o amargo preço do inominável crime. Ocorre que há um fato a ele relacionado, aliás, honroso para o Brasil, que merece ser lembrado, embora não seja desconhecido, do que é testemunha o estudo modelar de Homero Senna Uma Voz contra a Injustiça - Rui Barbosa e o caso Dreyfus. Ninguém duvida de que o Eu Acuso!, de Zola, deu ao episódio dimensão espetacular, colocando-o ao nível da rua. Mas, importa notar, enquanto a carta aberta é de 13 de janeiro de 1898, três anos depois da condenação e degradação do oficial francês, ocorrida em 5 de janeiro de 1895 - e nesses três anos alguma coisa tinha mudado em França -, sem outras informações além do limitado noticiário jornalístico, dois dias depois da degradação humilhante, em 7 de janeiro de 1895, Rui Barbosa, exilado em Londres, remetia para o Brasil O Processo do Capitão Dreyfus, que o Jornal do Comércio, do Rio, de 3 de fevereiro, publicou em sua primeira página, inserido nas Cartas de Inglaterra, editadas em volume no ano seguinte. Em missiva a Américo Jacobina Lacombe, seu parente e amigo, destinatário do manuscrito, confessou: “Fui seduzido e fascinado pelo assunto, que inopinadamente se me ofereceu, e que me vibrou no coração a corda da justiça, ainda não morta, apesar da dura lição que agora mesmo me está custando.” É tanto mais expressiva a defesa quando a França estava dominada por “espasmo de ódio insaciável” contra o infeliz acusado, “pleno arbítrio de negar a Deus, aluir a propriedade, santificar a comuna, divinizar Marat, mas obrigação estrita e universal de teimar e bater pé em como Dreyfus é o mais desprezível dos malfeitores”. Quando isso acontecia, fazia um terço do século que Rui havia deixado a Academia do Largo de São Francisco e, guiado por seu senso jurídico e esclarecido pelo que vira no mundo e estudara nos livros, embasou a conclusão absolutória. “Que faculdade sobre-humana deu àquele homem energia bastante, para sobreviver às emoções incomportáveis dessa provação? A não se tratar de um miserável, bronzeado na fronte, calejado no coração pela prática habitual dos vícios que emasculam o caráter, e saturam de impudor os mais baixos vilões, só duas forças seriam capazes de forrar uma alma contra a abjeção incomparável daquela queda, contra o desespero inaudito daquele destino: a insânia, ou a inocência. Ora, Dreyfus não tinha no seu passado uma nódoa, um traço duvidoso. Quinze anos de serviços imaculados e a alta posição de confiança, que ocupava no mais delicado ramo da administração da guerra, definem-lhe a fé de ofício. A superabundância dos seus recursos, a opulência de sua família, a simplicidade dos seus hábitos, a sua aversão ao jogo, a concentração exclusiva da sua vida particular nas afeições domésticas excluem a suspeita das seduções tenebrosas, que são freqüentemente a explicação obscura dessas catástrofes da honra. De onde viria, pois, a tentação inexplicável, que instantaneamente prostituiu aquele ornamento da sua classe, aquela nobre esperança dos seus concidadãos?” E continuava: “Narram as testemunhas atentas do suplício que o executado não empalideceu nunca. Os passos não lhe vacilaram. Não lhe tremeu a voz. A cabeça esteve sempre ereta. Ao ver, de manhã, preparada a sua farda para a cerimônia, ‘Capitão’, disse ele ao oficial presente, ‘estais sendo instrumento da maior injustiça deste século.’ Quando, ao empuxão do executor o kepi lhe desceu sobre os olhos, a mão levantou-se-lhe como invocação de um inocente: ‘Por minha mulher e meus filhos’, exclamou, ‘juro que sou inocente. Viva a França!’ Aos apupos de um grupo de oficiais, ‘com admirável império sobre si mesmo’, diz um jornalista, respondeu serenamente: ‘Feri, mas não insulteis. Eu sou inocente.’ E ainda ao sair, no momento em que os gendarmes lhe punham algemas, teve forças, para dizer aos seus camaradas do 59 de infantaria: ‘Crede-me, senhores, sou um mártir.’” Depois de anos de sofrimentos morais e tormentos físicos na Ilha do Diabo, foi sendo quebrada a quase unanimidade reinante em França quanto à culpabilidade do condenado. A carta de Zola foi semelhante ao estilhaçar de uma vidraça. Por esse tempo, Rui fez imprimir, em francês, a carta de 1895, que chegou às mãos do proscrito como ele relata no livro Carnets 1899-1907, reeditado em 1998: “A la fin de ce mois de mai 1900, il me fut remis un opuscule intitulé ‘Le premier plaiddoyer pour Dreyfus’, qui était uma lettre que Rui Barbosa, le grand homme d"État brésilen, écrivait de Londres le 7 janvier 1895, et qui fut insérée dans le numéro du 3 février suivant du Jornal do Comércio de Rio de Janeiro. Cette lettre est extrêmment intéressante et remarquable pour la date à laquelle elle a été écrite. En voici quelques extraits:...”, cap. III, p. 39-41 (“No fim deste mês de maio de 1900, foi-me remetido um opúsculo intitulado ‘A primeira defesa de Dreyfus’, que era uma carta que Rui Barbosa, o grande homem de Estado brasileiro, escreveu de Londres em 7 de janeiro de 1895, e que foi inserida no número de 3 de fevereiro seguindo do Jornal do Comércio do Rio de Janeiro. Esta carta é extremamente interessante e notável pela data em que foi escrita. Eis aqui alguns trechos...”) Durante anos a fio a França enfrentou terrível crise pelo erro de janeiro de 1895. Desde então ela mudou, mudou a Europa e o mundo mudou e o processo contra o capitão Dreyfus, reabilitado em 1906, reintegrado ao Exército, promovido e distinguido com a Legião de Honra, continua sendo nódoa a tisnar nação de tantas qualidades nobres. |
Entrevista:O Estado inteligente
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O processo Dreyfus
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