Chama-se compra de votos o que fizeram na quinta-feira o presidente da Câmara, Aldo Rebelo, do PC do B, e o do Senado, Renan Calheiros, do PMDB, com a cumplicidade dos integrantes das Mesas Diretoras de ambas as casas e a convicta anuência dos respectivos líderes de bancadas. Eles aumentaram em 90,7% os vencimentos dos congressistas, 3,6 vezes acima da inflação acumulada desde o reajuste anterior, em 2003. Em campanha para se manter nos cargos na legislatura que se inicia em 1º de fevereiro próximo, Rebelo e Calheiros trataram evidentemente de ser tornar credores de todos quantos, entre os 513 deputados federais e os 81 senadores da República, não se envergonham de passar a receber R$ 24,5 mil a título de salário, mais ajuda de custo, auxílio-moradia, verba indenizatória, verba de gabinete, cotas de passagens aéreas, cobertura de despesas com correspondência, material gráfico, além de gasolina para os seus carros com motorista.
Dá, por baixo, R$ 100 mil mensais para cada deputado e R$ 146 mil para cada senador. Ou, para o contribuinte, cerca de R$ 1,7 bilhão ao ano, incluído o efeito dominó da megamajoração nas câmaras legislativas estaduais (1.054 deputados) e municipais (51.814 vereadores). Detalhe: os outros aspirantes à sucessão no Congresso, o petista Arlindo Chinaglia e o pefelista João Agripino, também apoiaram a acintosa investida ao trem pagador. A desfaçatez esguicha de todos os lados. A decisão foi de igualar o salário dos parlamentares ao dos ministros do Supremo Tribunal Federal, com reajuste automático sempre que este subir - a pretexto de que uns e outros se equivalem. Mas é o Congresso que fixa a paga dos ministros - e já há um projeto aumentando-a em 5%, no teto do Judiciário. O presidente da Câmara diz que a bonança terá custo zero porque será compensada com cortes de obras. É muita cara-de-pau.
O presidente do Senado diz que a Constituição dá ao Congresso, ao final de uma legislatura, a prerrogativa de fixar o salário dos seus membros para o período seguinte. A cientista política Lúcia Hippolito esclarece que a Carta determina apenas que deputados e senadores devem ganhar “idêntico subsídio”. Não fala em aumentos. E, se a decisão cabe ao Congresso, argumenta a cientista, não poderia ter sido tomada pelas Mesas e as lideranças, mas em plenário. Contestar no mérito a rapinagem dos legisladores é tão útil, porém, quanto o cordeiro discutir com o lobo. Ou será melhor se referir à grande maioria de suas excelências como “a tigrada”? Afinal, este foi - para não dizer é - o Congresso do mensalão e dos sanguessugas: mais de 100 deputados chegaram a ser investigados; só 4 terminaram cassados, 6 renunciaram e 5 perderam os mandatos na Justiça.
Os fornos da pizzaria da impunidade funcionaram a carga plena. Os 69 deputados e 3 senadores para os quais o relatório preliminar da CPI da máfia das ambulâncias pediu processo de cassação nem foram mencionados no relatório final, divulgado no mesmo dia do aumentaço. Poucos deles se reelegeram, mas decerto o pior que pode acontecer a todos, bem como aos mensaleiros, é terem de pagar imposto sobre ganhos ilícitos. O notório Al Capone só foi para a cadeia por sonegação, mas os legisladores corruptos e bem pagos de Brasília não terão a mesma sina, nem por isso nem por outros malfeitos. A CPI dos Sanguessugas salvou a pele de todos os parlamentares. Em relação ao escândalo dentro do escândalo - o dossiê Vedoin -, a comissão pediu o indiciamento, por tráfico de influência, corrupção e outros delitos, de dois lobistas que agiam no Ministério da Saúde, do empresário Abel Pereira (acusado de participar da máfia na gestão do tucano Barjas Negri) e do recém-eleito deputado petista José Airton Cirilo (na gestão do companheiro Humberto Costa).
E, por “vislumbrar” crime de formação de quadrilha, pediu o indiciamento dos aloprados Jorge Lorenzetti, Hamilton Lacerda, Expedito Veloso, Osvaldo Bargas, Gedimar Passos e Valdebran Padilha. Poderia ter sido pior. Segundo o vice-presidente da CPI, deputado Raul Jungmann, não faltaram pressões para que fossem indiciados apenas por crime eleitoral. E a origem do R$ 1,75 milhão apreendido pela Polícia Federal talvez nunca se elucide, admite placidamente o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. “O ideal era que tivesse havido uma confissão, mas não houve”, resigna-se. “Isso faz parte da vida” - vida pública brasileira, esqueceu de esclarecer.