fonte: O Estado de São Paulo | 10 de dezembro de 2006 |
Há, obviamente, uma ansiedade equivocada do leitor em personalizar males, em explicações simples para acontecimentos complexos. O trabalho de Fest foi tão bom porque, à maneira de historiadores como A.J.P. Taylor, entendeu Hitler também como expressão de valores de sua época e lugar, não como uma aberração hipnótica ou algo do gênero; ao mesmo tempo, não punha panos quentes na descrição do Führer e suas barbáries deliberadas. Volkogonov e Montefiore, o primeiro de modo mais direto e opinativo, também dão muita ênfase ao contexto de formação de Stalin. Li nestas semanas as biografias de Mao e Lenin e, apesar da extensão delas, não encontrei a mesma abrangência. A de Mao é como uma enumeração de suas atrocidades; a de Lenin avança perigosamente na especulação. Ainda assim, valem a leitura, sobretudo pelas informações novas.
Elas também dão o que pensar, quando avaliamos essa tendência editorial, sobre algumas semelhanças não apenas entre os ditadores, mas também entre os processos que os levaram ao controle do Estado. Afinal, esses regimes não podem ser dissociados da psicologia de seus comandantes. Shakespeare, a quem interessava tanto a manifestação da natureza humana em condição de poder, não perderia a oportunidade. Como Ricardo III, esses tiranos mostram não poucos traços de orgulho paranóico e de desconforto com os “prazeres preguiçosos destes dias”. Seu reino de terror foi estabelecido, assim, como espelho de sua disciplina férrea, de sua obstinação metódica – em que explosões de raiva e doenças eram comuns, mas não eliminavam a frieza de seu objetivo final.
Eles foram alunos razoáveis, criados em regiões provincianas por mães protetoras e pais castradores; eram candidatos a intelectuais, que liam muito – incluindo romances americanos – e simultaneamente exaltavam ofícios manuais, razão pela qual levaram tantos ao trabalho forçado. Sua ideologia maior era o nacionalismo, a sensação de pertencer a um povo eleito para conduzir o mundo, e para isso elegeram outro povo ou país como inimigo a odiar, um inimigo sempre à espreita com seu modo de vida degenerador. Eles odiavam a arte e a sexualidade modernas, urbanas, e queriam mulheres submissas – as quais não hesitavam em trair sistematicamente. Manipulavam as informações e os subordinados para vender uma imagem heróica de si mesmos, para vender o culto à sua “persona” salvadora, enquanto viviam como nababos. Tinham pouco humor e, claro, extraíam prazer de testemunhar a crueldade sendo realizada, não por suas mãos, mas de modo que reforçasse sempre sua autoridade indriblável.
A biografia de Halliday e Chang (autora do best-seller Cisnes Selvagens) tem esse defeito sério que é sugerir que foi Mao quem inventou o autoritarismo à chinesa. Mas que um regime como esse, que em nome do coletivismo confiscava a produção dos camponeses e educava seus filhos na ideologia do sacrifício, tenha um dia atraído elogios de intelectuais estrangeiros “de esquerda” é algo que o livro torna ainda mais espantoso. Mao, que queria ser Stalin e deixou de combater a epidemia de fome para investir em bomba atômica, superou o modelo e media seu sucesso de acordo com o número de execuções; dezenas de milhões de chineses morreram. Desde jovem, a propósito, ele gostava de execuções lentas, com lanças típicas – mais tarde adotaria o fuzilamento em público, de modo que os miolos dos traidores espirrassem no colo dos presentes. Lenin, pelo mesmo motivo, tinha preferência por enforcamentos. A biografia de Service não tem a mesma agilidade narrativa, mas serve para mostrar que, embora mais sofisticado do que Mao ou Stalin, Lenin era igualmente um mitômano e insensível, que passava por cima dos inimigos políticos como um tanque e via o povo como sua massa de manobra. A velha discussão sobre se Stalin teria seguido ou desvirtuado o leninismo é hoje ociosa.
Cada tirania, porém, tem sua fisionomia. As latino-americanas, por exemplo, seguem estratégias semelhantes, mas com coberturas de afeto, de paternalismo, inerentes à cultura da região. Em outro livro em lançamento, O Homem Que Inventou Fidel, Anthony DePalma conta a história do “encantamento” do jornalista Herbert Matthews, do New York Times, por Fidel, a quem entrevistou na Sierra Maestra em 1957. Matthews acreditou que Fidel fosse uma combinação única de intelectual e combatente e um democrata radical – não um comunista prestes a estabelecer um regime autoritário e repressor, de partido único e retórica antiburguesa, como um Lenin caribenho. Pense agora em Chávez, para muitos um neopopulista venezuelano que “pelo menos faz alguma coisa pelos pobres”, em vez de um sujeito narcisista que chama Bush de “diablo”, manda mesada em petrodólares para Fidel e planeja ficar no poder por décadas. A tirania tem mil caras, mas uma índole só.
DE LA MUSIQUE
É a música que devem tocar na sala de espera do Paraíso, a do CD novo de Antonio Meneses (do selo Clássicos, ligado à revista Concerto), Schumann & Schubert, com o bom pianista francês Gérard Wyss. O violoncelista brasileiro está em pleno domínio nas quatro obras de Schumann, especialmente nas Cinco Peças Folclóricas (a terceira, faixa 8, um primor de balada), e na Sonata Arpeggione de Schubert, cujo segundo movimento é de um lirismo raro. Meneses, como o pianista Nelson Freire e o maestro Roberto Minczuk, é um dos maiores músicos brasileiros e, como eles, de crescente projeção no exterior. Este CD soma mais um item num currículo impecável.
A LÍNGUA DO ROSA
O cinqüentenário de Grande Sertão: Veredas vai chegando ao fim, mas as homenagens a Guimarães Rosa continuam. Já está nas livrarias a edição comemorativa, de apenas 10 mil exemplares, da editora Nova Fronteira. A capa é uma beleza, com o título tecido a fios vermelhos que se dependuram no fundo branco, e um catálogo da exposição montada por Bia Lessa na Estação da Língua acompanha o volume. (Só não gostei muito da enorme margem branca, que não acrescenta leveza, apenas páginas.) Saiu também o livro Quartas Histórias (org. Rinaldo de Fernandes, editora Garamond), em que, além de alguns textos sobre o autor, entre eles um ensaio meu, contistas como Miguel Sanches Neto, Fabrício Carpinejar e Antonio Carlos Viana inventam histórias a partir das rosianas. Por fim, há o dossiê da revista Estudos Avançados, que destaca a região onde suas narrativas se passam, a qual visitei no início do ano, e inclui até um CD, Sons do Sertão, com modinhas de violão e leituras de trechos por Antonio Candido e José Mindlin. E é pouco.
RODAPÉ
Enquanto outras revistas afundam em concessões ou então mal abrem espaço para o jornalismo cultural, a Cult vem neste mês com cardápio mais variado e traz uma carta inédita de Truman Capote, em que diz que numa obra literária “a fantasia deve ser emoldurada por detalhes muito realistas”, e uma entrevista do biógrafo Gerald Clarke, que lamenta que a personalidade “espalhafatosa” de Capote obscureça suas qualidades como autor. Dele, acaba de sair no Brasil a antologia 20 Contos, em que se vê claramente o percurso de seu estilo: de indefinido a afetado e então a cristalino, rico em imagens fluentes.
POR QUE NÃO ME UFANO
É muito divertido como os lulistas rebatem críticas que o próprio Lula acaba fazendo depois. Foi assim em muitos casos, como quando ele chamou de aloprados os conspiradores do dossiê Vedoin. E foi assim recentemente, quando, para justificar a fatia maior do bolo para o PMDB, Lula disse que cometeu o erro de montar o governo anterior com amigos, sem critério técnico. Quem dizia isso há quatro anos era atacado de tudo que é lado... Agora, venha cá: será preciso governar um país durante um mandato inteiro para aprender um princípio fundamental como esse? O próximo passo é Lula entender que crises como a do apagão aéreo, que está humilhando milhares de cidadãos e prejudicando a economia, se devem à mesma mentalidade. Quem sabe em 2010.