A Grécia obtém uma vitória na briga
internacional por tesouros artísticos
Marcelo Marthe
Carabinieri/AP |
ESTÁTUA DE AFRODITE |
Na segunda-feira passada, depois de uma disputa que se arrastou por treze anos, o Museu J. Paul Getty, de Los Angeles, anunciou um corte doloroso na própria carne: a devolução de duas relíquias de seu acervo ao país de origem das mesmas, a Grécia. A principal delas é uma coroa funerária de ouro, datada do século IV a.C. A outra peça, do mesmo período, é uma kore – estatueta que, na civilização grega antiga, representava uma espécie de sumo ideal da beleza feminina. Ambas foram adquiridas pelo museu em 1993 e desde então eram reclamadas pelo governo grego, que alegava terem saído de seu território ilegalmente. O pleito está longe de representar um caso isolado. Nos últimos anos, países como a Grécia, a Itália e o Egito intensificaram a pressão para recuperar tesouros retirados de seu território no passado. E, não raro, têm obtido êxito. Recentemente, o Museu Getty devolveu um lote de antiguidades reclamadas pelas autoridades italianas. Há três anos, a própria Itália foi obrigada a enviar de volta à Etiópia o Obelisco de Axum, monumento de 165 toneladas tirado do país africano pelo exército do ditador Benito Mussolini, nos anos 30.
Até a II Guerra Mundial, os países que se apropriavam dessas riquezas podiam simplesmente ignorar tais apelos. Desde então, contudo, o ambiente mudou. Convenções internacionais protegem esse patrimônio e os países adotaram leis rígidas. Itália e Grécia vêm somando esforços para rastrear o contrabando de relíquias. Suas vitórias sobre o Museu Getty são um reflexo disso. A Itália reclamava a devolução de 46 peças. Embora tenha interrompido as negociações por se negar a devolver parte delas – como uma magnífica estátua da deusa Afrodite –, o Getty concordou em se desfazer de 26 outras. Além das obras que serão reavidas agora, a Grécia já havia forçado o museu a entregar-lhe duas em julho passado.
Benaki Museum/AFP |
COROA FUNERÁRIA |
Não é por ter bom coração que a instituição faz isso. A forma duvidosa como as peças foram adquiridas ameaça tisnar sua credibilidade. Marion True, ex-diretora que cuidou dessas transações, é alvo de um processo na Itália por ter negociado com marchands suspeitos (um dos quais, aliás, foi preso). Graças à colaboração com a polícia italiana, a Grécia obteve provas de que elas foram obtidas em escavações ilegais numa fazenda e passaram por vários traficantes de arte antes de chegar às mãos de Marion. Esta teria, a princípio, recusado a compra – mas, estranhamente, teria mudado de idéia quatro meses depois. Em tempo: quando as restituições ocorrem, quem sai no prejuízo é a instituição. O Getty perdeu os 4,5 milhões de dólares que pagara em 1993 pelas duas peças gregas.
O fato de ter se criado um consenso de que é direito de cada país conservar seus tesouros não significa, é claro, que todos os pleitos tenham peso igual. Muita coisa saiu de seu lugar de origem em contextos históricos diferentes. É o caso dos chamados Mármores de Elgin, que adornavam o Partenon ateniense e foram transportados para a Inglaterra há 200 anos. A Grécia os quer de volta – mas isso está fora de cogitação para os ingleses. Eles entendem que têm direito sobre as relíquias, até porque as teriam salvado. Quando foram transportados para Londres pelo então embaixador britânico no Império Otomano, lorde Elgin, os mármores corriam risco de destruição. No século XVII, o Partenon chegou a ser usado como depósito de munições e foi bombardeado. Outra pendenga diz respeito aos Bronzes de Benin, conjunto de estátuas que os ingleses carregaram, no século XIX, da costa onde hoje ficam a Nigéria e o Benin. Atualmente em posse de diversos museus europeus, essas peças são alvo de questionamento. Algumas delas só foram enviadas por um museu berlinense para uma mostra no Rio de Janeiro, há três anos, depois que o governo brasileiro se comprometeu a não cedê-las à Nigéria caso esta tentasse reavê-las com medidas diplomáticas. No centro de outra disputa – um tanto inusitada, diga-se – está o obelisco que Napoleão Bonaparte carregou como troféu de sua célebre campanha militar no Egito. Os egípcios nunca esconderam o desejo de reavê-lo. Mas é difícil imaginar Paris sem esse cartão-postal.
Bonaparte inaugurou um período em que as potências européias se dedicaram intensamente à apropriação de relíquias. Não à toa, foi também no século XIX que se formaram os acervos dos grandes museus mundiais. Esse expediente se tornou impensável. Os percalços do Getty evidenciam a dificuldade dos museus para estabelecer coleções hoje em dia. Em raras ocasiões há vendas legítimas. Fora disso, há o mercado negro. A maioria dos países até permite aos estrangeiros fazer escavações. Mas eles já não podem se apropriar do que encontram – como ocorreu com os tesouros de Pergamon, tema de uma mostra recente em São Paulo. Ao fazer essa descoberta, no século XIX, a Alemanha foi autorizada pela Turquia, onde se encontrava o sítio arqueológico, a transportar para Berlim grande quantidade de peças. "Hoje é praticamente impossível formar um acervo clássico", diz o antropólogo Tiago de Oliveira Pinto, curador da mostra.
Tesouros em disputaMÁRMORES DE ELGIN
Grahan Barclay/Getty Images |
Ao serem levados para a Inglaterra, há 200 anos, os frisos do Partenon ateniense corriam risco de destruição. Eles hoje são uma das jóias do Museu Britânico. A Grécia insiste em tê-los de volta, mas isso está fora de questão para o governo inglês
OBELISCO DA PLACE DE LA CONCORDE
Um dos troféus da campanha de Napoleão no Egito, no século XIX, o monumento parisiense também consta entre os pedidos de devolução. A demanda não é levada a sério pelo governo francês
Oliver Lang/AFP |
BUSTO DE NEFERTITI
O Egito reivindica essa relíquia encontrada em seu território por arqueólogos alemães nos anos 20 e hoje pertencente a um museu de Berlim. A Alemanha alega que, na época, seu traslado foi autorizado