Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 02, 2006

VEJA Roberto Pompeu de Toledo


Em honra da alma
mestiça do Brasil

Um belo espetáculo leva a pensar
nas cotas nas universidades e no
prejuízo que elas podem trazer

O Brasil é um país muito bom. (Já se ouve a reação: "Não brinca. Conta outra".) Tanto nos acostumamos a falar e pensar mal do país, tanto isso virou chique, que esquecemos suas virtudes. (A desconfiança aumenta: "Isso está soando a blablablá patrioteiro.) O.k., o Brasil não é tão bom. (Alívio: "Agora ele fala sério".) Mas raros países ofereceriam espetáculo como a interpretação de Vozes do Holocausto, peça baseada numa coletânea de canções dos guetos e campos de concentração interpretadas por um coral baiano de brancos, negros e mulatos, de idade entre 6 e mais de 60 anos, entre os quais certamente se encontrariam adeptos de variadas religiões, mas dificilmente da religião judaica. Eram 140 vozes, nada menos que isso, a apresentar-se na semana passada em São Paulo. Pura expressão da alma parda e tropical do Brasil, entoavam em iídiche versos como: "Gueto, você sempre me acompanhará como um eco / Será sempre esta música triste em meu coração".

Vozes do Holocausto é uma peça arranjada para coral e orquestra de câmara pelo jovem (22 anos) compositor americano Sheridan Seyfried. O maestro baiano Cícero Alves Filho ouviu-a nos Estados Unidos e decidiu executá-la no Brasil. Primeiro, encenou-a em Salvador. A apresentação em São Paulo foi com os mesmos cantores baianos – noventa adultos e cinqüenta adolescentes e crianças. As crianças foram ensaiadas pela professora Carmen Mettig Rocha, que, para introduzi-las no tema, lhes contou histórias como a de Anne Frank. Para elas, o mundo são as calçadas do Pelourinho, as areias de Amaralina e os coqueiros de Itapuã. O nazismo e o shoah constituem uma realidade distante. Por isso mesmo, suas vozes soavam mais emocionantes e generosas ao cantar: "Eu toco realejo, / Toco com coragem e talento. / Amanhã Treblinka pode chamar / E lá nos transformaremos num monte de cinzas".

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Cotas nas universidades para alunos negros ou mestiços (sem essa de "afro-descendentes", por favor) são um assunto complicado. Quem se diz contra arca com as pechas infamantes ou de cúmplice da injustiça ou de crédulo partidário da lenda de que no Brasil não há preconceito racial. Para comprovar que há, sim, preconceito, basta lembrar que a escrava Isaura era branca. Ou seja: a personagem central da principal obra literária contra a escravidão no Brasil era uma escrava branca, uma fantasia de ficcionista. Ficaria mais difícil os leitores se emocionarem com sua sorte se ela fosse apresentada como negra. Sim, há preconceito no Brasil, argumentariam os que, ainda assim, se oporiam às cotas – mas e o mérito? Onde fica a democracia, se no processo de seleção passa a influir a cor da pele, em detrimento da qualificação intelectual? O argumento revela-se falacioso quando se lembra que no país, mais do que o mérito, é o privilégio que favorece o acesso às melhores escolas. Nascer num lar bem fornido é meio caminho andado para passar no vestibular.

Até aqui os argumentos se amontoam a favor das cotas. Até que se esbarra numa amarga realidade. Para pô-las em vigor é antes necessário identificar quem está credenciado a se beneficiar delas. Ora, não há outro modo senão estabelecendo, de modo oficial, quem é negro, quem é mulato e quem é branco. Começa então a derrocada. O Brasil até agora viveu livre de tais classificações. Não que tenha sido muito feliz sem elas, mas arrisca-se a ser muito mais infeliz com elas. Quem gosta de classificar é americano. Lá existe até a categoria de "latinos", para classificar racialmente as populações que se estendem do México para baixo. A classificação engessa os grupos em entidades separadas e irredutíveis entre si e alimenta sua mútua hostilidade.

No Brasil, vigora a bagunça. Ronaldo Fenômeno se considera branco (e com toda a razão, porque a melhor norma é que cada um se imagine da cor que bem entender), assim como Vinicius de Moraes se proclamava, desafiadoramente, "o branco mais preto do Brasil". A bagunça funciona nesse caso a favor, como antídoto à segregação, filha dileta das classificações. O preconceito no Brasil convive com a força contrária da confusão, da mistura, da malemolência. Se é para ser atacado o privilégio no acesso à universidade – e é –, que o seja por meio de cotas por renda, ou para alunos de escola pública, não pela cor da pele.

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O espetáculo Vozes do Holocausto, tal qual encenado pelos baianos, é um argumento vivo contra as cotas. As crianças brancas e negras, mais ou menos brancas e mais ou menos negras, que interpretavam em iídiche o martírio dos judeus personificavam o Brasil em sua hora mais feliz. Não é por estarmos na semana do 7 de Setembro, não, mas tem horas em que o Brasil é um país muito bonito.

P.S.: O espetáculo Vozes do Holocausto e a visão do Brasil que ele proporcionou prestaram ao colunista o favor de dispensá-lo de falar da campanha eleitoral.

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