Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 02, 2006

VEJA LIVROS Cosmética intelectual

Um livro mostra a estranha história
da busca pela beleza física


Jerônimo Teixeira

Beleza é sacrifício. Entre outras curiosidades, História da Beleza (tradução de Léo Schlafman; Ediouro; 248 páginas; 44,90 reais) oferece um verdadeiro catálogo de torturas que mulheres de todas as épocas infligiram a si mesmas para atingir os padrões de aparência vigentes: sangrias, maquiagem à base de metais tóxicos, banhos frios, massagens com choque elétrico. O impassível Georges Vigarello, historiador francês da Universidade Paris 5, descreve esses suplícios sem nenhum compadecimento ou deleite sádico. O leitor brasileiro, porém, não precisa respeitar a compostura acadêmica francesa: aconselha-se que o livro de Vigarello seja lido não pelas especulações sociofilosóficas sobre a insuficiência do vocabulário cotidiano para definir a beleza – mas sim por sua coletânea de esquisitices. Trata-se, no fundo, de um almanaque da ciência cosmética, do Renascimento aos dias de hoje.




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Trecho do livro

Uma ou outra referência à Itália ou à Inglaterra pipocam no livro, mas faltou uma restrição importante em seu título: o leitor está na verdade diante de uma História da Beleza na França. É bem provável, porém, que as tendências apontadas pelo autor sejam observáveis em todo o mundo ocidental: os padrões de beleza correram no sentido do desnudamento, da leveza. Na Renascença, ensina Vigarello, ainda vigorava uma concepção de beleza idealizada que só dava importância ao "elevado" – o busto e principalmente o rosto. Sob a escuridão dos vestidos, as pernas e os quadris nada mais eram do que um pedestal estático para o torso e a cabeça. Desde então, a moda e a cosmética progrediram no sentido de libertar e valorizar o corpo.

E também de emagrecê-lo. Um manual de beleza do século XVI recomendava que as jovens fossem açoitadas e se introduzisse pó de giz nas feridas, o que supostamente deixaria o corpo desidratado e esbelto (até onde se sabe, o método não foi popular). Mas essa é uma exceção: a magreza só se estabeleceu efetivamente como padrão de beleza na virada do século XIX para o XX – pela mesma época em que as mulheres se libertavam do sufocante espartilho e as roupas começavam a exibir as verdadeiras formas do corpo.

Todo esse argumento se ampara em um acúmulo maníaco de citações – de poetas como Ronsard e Baudelaire a revistas de moda como Elle e Vogue. Apesar da abundância de fontes, a história propriamente dita às vezes aparece só como ruído de fundo. É como se a moda e a beleza se movessem no limbo, isoladas de catástrofes e convulsões. No capítulo sobre o século XVIII, por exemplo, quase não se fala em Revolução Francesa. Com sua prosa incolor e suas interpretações ligeiras, Vigarello – autor de outros livros de história miúda, como O Limpo e o Sujo – não tem grandes idéias a oferecer. Mas é muito bom na coleção de casos e curiosidades.


PERFEIÇÃO ETERNA

Gisele Bündchen seria bela em qualquer época – mas os padrões do passado esconderiam alguns de seus melhores atributos

SÉCULO XXI
Georges Vigarello diz que a beleza se democratizou no mundo contemporâneo, fixando a ilusão de que qualquer um pode ser belo. Na realidade, Gisele Bündchen é o padrão de beleza

SÉCULO XIX
Ainda discretos, os vestidos já insinuariam algumas das magníficas curvas da modelo. No fim do século, a magreza começa a se impor como padrão de beleza mas isso, claro, não seria problema para Gisele

SÉCULO XVIII
A única beleza visível seriam o rosto e parte do busto – oprimido pelo espartilho. Gisele poderia engordar à vontade: barriga, quadris e pernas ficavam ocultas sob os vestidos armados, como o pintado por Boucher

Leia trecho de História da Beleza,
de Georges Vigarello

O penteado "compõe" as cabeças

A personalização joga ainda com o artifício, transformando os processos de embelezamento: a cabeça está em primeiro lugar. Os fabricantes de perucas reivindicam, no século XVIII, uma sutil adaptação de suas montagens às formas diferentes de cada pessoa: bucles e frisados teriam de se subordinar ao estilo das fisionomias. A Enciclopédia das perucas mostra-o, em 1757, diversificando seus modelos, pesquisando "todas as espécies de cabeças, sistematizando sobreposições e dispositivos até propor uns cinqüenta tipos diferentes. O resultado, constata-se, é modesto: cada figura aparece mais como modelo já pronto — "leve","caçadora","lunática", "preguiçosa" — do que escolha singular. Isso confirma a dificuldade de "personalizar".

Os cabeleireiros, em compensação, exprimem com mais força, alguns anos mais tarde, esse esforço explícito em direção à individualização: "O número de frisados é quase infinito", assegura Molé em sua história das modas, em 1773. A fisionomia impõe pela primeira vez a acuidade de uma "arte do penteado", isto é, de valorizar o rosto simbolizando o "belo sexo", de adaptar cada bucle a cada traço. Foi necessária a querela entre cabeleireiros e fabricantes de perucas levada ao parlamento de Paris em 1769, a reivindicação de um reconhecimento oficial dos cabeleireiros até então limitados ao papel de domesticidade, esta velha atribuição de "camareiras", para afirmar uma nítida especificidade: "Uma testa mais ou menos grande, um rosto mais ou menos redondo, exigem tratamentos bem diferentes... Convém ainda combinar com o tom da carne, a cor sob a qual o condimento deve ser escolhido." Os cabeleireiros reivindicam uma "arte liberal", faculdade reservada à "engenharia", diferente da "arte mecânica", mais rotineira, em que eles pretendem alojar os fabricantes de perucas e suas "práticas puramente manuais". Pouco importam as categorias: os cabeleireiros tiveram ganho de causa alguns anos mais tarde. Luís XVI criou seiscentos cargos de cabeleireiros em 1777. O retrocesso das perucas no fim do século XVIII favoreceu sem dúvida esse sucesso, mas o tema de uma "arte do penteado" se impôs: com a vantagem de que valorizaria diferentemente cada pessoa e cada traço. É o que afirmam com mais ênfase as "cabeleireiras, fabricantes de artigos de malha e maquiadoras" de Rouen recordando seu velho estatuto e reclamando, em 1773, um reconhecimento feminino da profissão, contra o único reconhecimento masculino, garantindo que "seu sexo [possui] um tato mais seguro para os detalhes de ajustamento, inteligência mais fina para a invenção e arranjo dos acessórios que o compõem, gosto mais rebuscado para os ornamentos que realçam a beleza sem causar afetação".

Celebridades novas encarnam esses "preparadores de graças capilares" que valorizam a engenharia do penteado: Frison, Dagé, Legros, Larceneur, Leonard sobretudo, preferido por Maria Antonieta antes de seguir os clientes na emigração, autor de memórias exaltando seu ofício. O penteado se tornou "arranjo": convergência entre o "espírito do rosto" e o artifício do cabelo.



Escolher a cor do rosto

Os cosméticos seguem a mesma interrogação sobre a fisionomia no século XVIII. As maquiagens, por exemplo, devem se adaptar a cada pessoa: é preciso um vermelho "que diga alguma coisa". Mademoiselle Desmiers d’Archac, sobrinha em terceiro grau de Saint-Simon, era admirada nos anos 1780 por saber adaptar sua maquiagem à "luz do dia ou das velas". O "vermelho untuoso" proposto num artigo de Annonces, Affiches et Avis Divers, de 1770, pelo "senhor Moreau", retroseiro atacadista da rua Saint-Martin, revela as nuanças de cor com que a maquiagem pode ser objeto: seis tons de tinta, por exemplo, segundo as misturas efetuadas ou a pressão aplicada. Preocupação idêntica do "senhor Domson": dez espécies de ruge, escolhidas de acordo com os momentos do dia, a idade da mulher, os lugares que ela freqüenta. Preocupação idêntica ainda nos manuais de toalete com os ruges fixados de acordo com sua origem, França, Espanha, Portugal... Seriam nuanças insignificantes se não atestassem a busca de uma individualização: a coexistência de várias belezas. Daí o efeito multiplicador das cores: "Escolher o ruge é uma questão capital."

Outras causas ainda favorecem as nuanças: a necessidade de exprimir a sensibilidade, tornar visível o sentimento. Deve-se usar então tons mais leves, mais discretos para melhor marcar a escala do sensível cujo espectro, já se viu, enriqueceu-se largamente. A fineza deve aflorar, impondo a franqueza sobre a arte da máscara, o simples sobre o composto: "A sinceridade tem grande mérito no comércio do coração." O que reforça, no fim do século, a insistência de Marie de Saint-Ursin sobre a indispensável preocupação com os tons, essas "nuanças de uma paleta inesgotável [feitas] para dar vida à fisionomia inteira". Daí ainda o despeito de Madame de Genlis, constrangida a usar, na corte, durante os anos 1780, o ruge "muito mais carregado do que aquele que usava anteriormente".

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