Um livro mostra a estranha história
da busca pela beleza física
Jerônimo Teixeira
Beleza é sacrifício. Entre outras curiosidades, História da Beleza (tradução de Léo Schlafman; Ediouro; 248 páginas; 44,90 reais) oferece um verdadeiro catálogo de torturas que mulheres de todas as épocas infligiram a si mesmas para atingir os padrões de aparência vigentes: sangrias, maquiagem à base de metais tóxicos, banhos frios, massagens com choque elétrico. O impassível Georges Vigarello, historiador francês da Universidade Paris 5, descreve esses suplícios sem nenhum compadecimento ou deleite sádico. O leitor brasileiro, porém, não precisa respeitar a compostura acadêmica francesa: aconselha-se que o livro de Vigarello seja lido não pelas especulações sociofilosóficas sobre a insuficiência do vocabulário cotidiano para definir a beleza – mas sim por sua coletânea de esquisitices. Trata-se, no fundo, de um almanaque da ciência cosmética, do Renascimento aos dias de hoje.
EXCLUSIVO ON-LINE
Trecho do livro
Uma ou outra referência à Itália ou à Inglaterra pipocam no livro, mas faltou uma restrição importante em seu título: o leitor está na verdade diante de uma História da Beleza na França. É bem provável, porém, que as tendências apontadas pelo autor sejam observáveis em todo o mundo ocidental: os padrões de beleza correram no sentido do desnudamento, da leveza. Na Renascença, ensina Vigarello, ainda vigorava uma concepção de beleza idealizada que só dava importância ao "elevado" – o busto e principalmente o rosto. Sob a escuridão dos vestidos, as pernas e os quadris nada mais eram do que um pedestal estático para o torso e a cabeça. Desde então, a moda e a cosmética progrediram no sentido de libertar e valorizar o corpo.
E também de emagrecê-lo. Um manual de beleza do século XVI recomendava que as jovens fossem açoitadas e se introduzisse pó de giz nas feridas, o que supostamente deixaria o corpo desidratado e esbelto (até onde se sabe, o método não foi popular). Mas essa é uma exceção: a magreza só se estabeleceu efetivamente como padrão de beleza na virada do século XIX para o XX – pela mesma época em que as mulheres se libertavam do sufocante espartilho e as roupas começavam a exibir as verdadeiras formas do corpo.
Todo esse argumento se ampara em um acúmulo maníaco de citações – de poetas como Ronsard e Baudelaire a revistas de moda como Elle e Vogue. Apesar da abundância de fontes, a história propriamente dita às vezes aparece só como ruído de fundo. É como se a moda e a beleza se movessem no limbo, isoladas de catástrofes e convulsões. No capítulo sobre o século XVIII, por exemplo, quase não se fala em Revolução Francesa. Com sua prosa incolor e suas interpretações ligeiras, Vigarello – autor de outros livros de história miúda, como O Limpo e o Sujo – não tem grandes idéias a oferecer. Mas é muito bom na coleção de casos e curiosidades.
PERFEIÇÃO ETERNA
Gisele Bündchen seria bela em qualquer época – mas os padrões do passado esconderiam alguns de seus melhores atributos
SÉCULO XXI
Georges Vigarello diz que a beleza se democratizou no mundo contemporâneo, fixando a ilusão de que qualquer um pode ser belo. Na realidade, Gisele Bündchen é o padrão de beleza
SÉCULO XIX
Ainda discretos, os vestidos já insinuariam algumas das magníficas curvas da modelo. No fim do século, a magreza começa a se impor como padrão de beleza mas isso, claro, não seria problema para Gisele
SÉCULO XVIII
A única beleza visível seriam o rosto e parte do busto – oprimido pelo espartilho. Gisele poderia engordar à vontade: barriga, quadris e pernas ficavam ocultas sob os vestidos armados, como o pintado por Boucher
Leia trecho de História da Beleza,
de Georges Vigarello
O penteado "compõe" as cabeças
A personalização joga ainda com o artifício, transformando os processos de embelezamento: a cabeça está em primeiro lugar. Os fabricantes de perucas reivindicam, no século XVIII, uma sutil adaptação de suas montagens às formas diferentes de cada pessoa: bucles e frisados teriam de se subordinar ao estilo das fisionomias. A Enciclopédia das perucas mostra-o, em 1757, diversificando seus modelos, pesquisando "todas as espécies de cabeças, sistematizando sobreposições e dispositivos até propor uns cinqüenta tipos diferentes. O resultado, constata-se, é modesto: cada figura aparece mais como modelo já pronto — "leve","caçadora","lunática", "preguiçosa" — do que escolha singular. Isso confirma a dificuldade de "personalizar".
Os cabeleireiros, em compensação, exprimem com mais força, alguns anos mais tarde, esse esforço explícito em direção à individualização: "O número de frisados é quase infinito", assegura Molé em sua história das modas, em 1773. A fisionomia impõe pela primeira vez a acuidade de uma "arte do penteado", isto é, de valorizar o rosto simbolizando o "belo sexo", de adaptar cada bucle a cada traço. Foi necessária a querela entre cabeleireiros e fabricantes de perucas levada ao parlamento de Paris em 1769, a reivindicação de um reconhecimento oficial dos cabeleireiros até então limitados ao papel de domesticidade, esta velha atribuição de "camareiras", para afirmar uma nítida especificidade: "Uma testa mais ou menos grande, um rosto mais ou menos redondo, exigem tratamentos bem diferentes... Convém ainda combinar com o tom da carne, a cor sob a qual o condimento deve ser escolhido." Os cabeleireiros reivindicam uma "arte liberal", faculdade reservada à "engenharia", diferente da "arte mecânica", mais rotineira, em que eles pretendem alojar os fabricantes de perucas e suas "práticas puramente manuais". Pouco importam as categorias: os cabeleireiros tiveram ganho de causa alguns anos mais tarde. Luís XVI criou seiscentos cargos de cabeleireiros em 1777. O retrocesso das perucas no fim do século XVIII favoreceu sem dúvida esse sucesso, mas o tema de uma "arte do penteado" se impôs: com a vantagem de que valorizaria diferentemente cada pessoa e cada traço. É o que afirmam com mais ênfase as "cabeleireiras, fabricantes de artigos de malha e maquiadoras" de Rouen recordando seu velho estatuto e reclamando, em 1773, um reconhecimento feminino da profissão, contra o único reconhecimento masculino, garantindo que "seu sexo [possui] um tato mais seguro para os detalhes de ajustamento, inteligência mais fina para a invenção e arranjo dos acessórios que o compõem, gosto mais rebuscado para os ornamentos que realçam a beleza sem causar afetação".
Celebridades novas encarnam esses "preparadores de graças capilares" que valorizam a engenharia do penteado: Frison, Dagé, Legros, Larceneur, Leonard sobretudo, preferido por Maria Antonieta antes de seguir os clientes na emigração, autor de memórias exaltando seu ofício. O penteado se tornou "arranjo": convergência entre o "espírito do rosto" e o artifício do cabelo.
Escolher a cor do rosto
Os cosméticos seguem a mesma interrogação sobre a fisionomia no século XVIII. As maquiagens, por exemplo, devem se adaptar a cada pessoa: é preciso um vermelho "que diga alguma coisa". Mademoiselle Desmiers d’Archac, sobrinha em terceiro grau de Saint-Simon, era admirada nos anos 1780 por saber adaptar sua maquiagem à "luz do dia ou das velas". O "vermelho untuoso" proposto num artigo de Annonces, Affiches et Avis Divers, de 1770, pelo "senhor Moreau", retroseiro atacadista da rua Saint-Martin, revela as nuanças de cor com que a maquiagem pode ser objeto: seis tons de tinta, por exemplo, segundo as misturas efetuadas ou a pressão aplicada. Preocupação idêntica do "senhor Domson": dez espécies de ruge, escolhidas de acordo com os momentos do dia, a idade da mulher, os lugares que ela freqüenta. Preocupação idêntica ainda nos manuais de toalete com os ruges fixados de acordo com sua origem, França, Espanha, Portugal... Seriam nuanças insignificantes se não atestassem a busca de uma individualização: a coexistência de várias belezas. Daí o efeito multiplicador das cores: "Escolher o ruge é uma questão capital."
Outras causas ainda favorecem as nuanças: a necessidade de exprimir a sensibilidade, tornar visível o sentimento. Deve-se usar então tons mais leves, mais discretos para melhor marcar a escala do sensível cujo espectro, já se viu, enriqueceu-se largamente. A fineza deve aflorar, impondo a franqueza sobre a arte da máscara, o simples sobre o composto: "A sinceridade tem grande mérito no comércio do coração." O que reforça, no fim do século, a insistência de Marie de Saint-Ursin sobre a indispensável preocupação com os tons, essas "nuanças de uma paleta inesgotável [feitas] para dar vida à fisionomia inteira". Daí ainda o despeito de Madame de Genlis, constrangida a usar, na corte, durante os anos 1780, o ruge "muito mais carregado do que aquele que usava anteriormente".
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
Arquivo do blog
-
▼
2006
(6085)
-
▼
setembro
(536)
- Cheio de moral
- Escândalo do abafa-dossiê
- Miriam Leitão Fora do debate
- MERVAL PEREIRA - A Bolsa e a vida
- CELSO MING
- Opção pela decência
- DORA KRAMER
- Mexicanização pós-eleitoral GESNER OLIVEIRA
- CLÓVIS ROSSI O pântano vai à TV
- Os dois pólos
- Véspera Por Reinaldo Azevedo
- Nova York quer proibir gordura trans
- Análise genética no combate ao câncer de mama
- E agora, coronel?
- VEJA ENTREVISTA Greg Behrendt
- Diogo Mainardi Um golpista sem farda
- André Petry Vem aí um massacre?
- Roberto Pompeu de Toledo Nem dá para acreditar
- Lya Luft Perfil de um líder
- Esse bicho exótico ia alçar vôo...
- O peso do Estado
- Os presídios se tornaram "business-centers" do crime
- Os sobreviventes da burocracia
- O X da questão
- Tensão e dinheiro na chegada
- Notas de Reinaldo Azevedo sobre canalhice M T Bast...
- Dossiê- Finalmente, as fotos
- Carta para o Chico Buarque
- A eterna lição de Garrincha
- A exemplo de Genoino, Okamotto faz visita ao terce...
- Celso Ming - Ninhada magra
- Clóvis Rossi - O perfeito mordomo (ou quase)
- Míriam Leitão - Crescimento murcho
- Merval Pereira - A Bolsa e a vida
- Luiz Garcia - Sol no domingo
- Eliane Cantanhede - Aposta de risco
- Dora Kramer - Operação conta-gotas
- Você pagava o salário de Hamilton
- Cora Ronai A mão e o Lula
- VEJA on-line: ESCÂNDALOS DO GOVERNO LULA
- Lula na ONU e a mentira
- Míriam Leitão - Fim do ciclo?
- Merval Pereira - Assistencialismo
- Retórica grand-guignolesca
- Os chineses estão rindo da gente
- Presidente pode perder 2º mandato por conta do dossiê
- Impeachment pode voltar a ser analisado, diz Busato
- Especialistas duvidam de saque tão alto de dólares
- Dora Kramer - As sombras da dúvida
- Celso Ming - Sem estouro de bolha
- Suspense
- É preciso debater
- Coronelismo "muderno"
- A vez do "Fora imprensa!"
- Clóvis Rossi - As duas abominações
- Eliane Cantanhede - Segundo turno é possível
- Freud e a mala Por Reinaldo Azevedo
- Lula e a perda do segundo mandato - se houver
- Todos os meninos do presidente Guilherme Fiuza
- A Vale e as viúvas
- LIÇÕES GAÚCHAS
- LULA CULPA MAIS UMA VEZ O PT
- OAB Aviso a Lula
- Lula não perdoa, mata...
- Míriam Leitão - Mal na lista
- Merval Pereira - 'Siga o dinheiro'
- Élio Gaspari - Doutor Ulysses, velai por Nosso Guia
- Dora Kramer - Vexame internacional
- Celso Ming - Rebaixamento
- Segundo turno no primeiro- Sergio Costa
- O direito de saber
- Fernando Rodrigues O risco do empate tecnico
- Clóvis Rossi - Nem os áulicos agüentam
- A chapa esquentou (por Lucia Hippolito)
- O petróleo ameaça Chávez
- Lula sabia?
- Golpe fantasioso
- Crise de nervos
- Míriam Leitão - Os conspiradores
- Merval Pereira - Voto estratégico
- "Isso não é Cristo, isso é o demônio", diz FHC sob...
- Luiz Garcia - Outra turma
- Eliane Cantanhede - Uma legião de traidores
- Dora Kramer - Palavras ao vento e homens ao mar
- Clóvis Rossi - A ceia de Lula
- Celso Ming - Abaixo dos 3%
- AUGUSTO NUNES Os farsantes vão à ONU
- Vigilância democrática
- Lá se vai mais uma cabeça - a de Berzoini
- Pérola de um raciocínio tortuoso
- PF apura nova reunião com petistas
- Conveniência do segundo turno
- Entendendo a mensagem de Bento XVI
- Fernando Rodrigues - Os detalhes finais da campanha
- Dossiê deve derrubar mais um
- A coisa errada, na frente de muita gente
- Churrasqueiro assumiu dívida de filha de Lula
- CHARGE
- O "Fora Lula" e quem são os golpistas
- Fernando Gabeira:Notas sobre uma semana punk
-
▼
setembro
(536)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA