Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 16, 2006

VEJA Entrevista: Dick Pound


O doping será vencido

Odiado por atletas e dirigentes, o presidente
da Agência Mundial Antidoping anuncia testes
contra a trapaça genética


André Fontenelle

Andre Forget/AFP

"Não se trata apenas de um atleta aqui e outro ali. Há equipes, médicos e treinadores trabalhando juntos para enganar"

Um dos homens mais odiados do esporte é o advogado canadense Richard Pound, "Dick" para os amigos e inimigos. Esse ex-nadador de 64 anos é o presidente da Agência Mundial Antidoping (AMA) desde que a entidade foi criada, em 1999. Nessa condição, comprou briga com gente poderosa do esporte, a quem acusa de falta de interesse em perseguir e punir atletas que usam substâncias proibidas. Desentendeu-se, por exemplo, com Sepp Blatter, presidente da Fifa, até que a entidade máxima do futebol se curvou ao Código Mundial Antidoping. Há quem diga que Pound está ultrapassado e defende uma causa inglória, pois o doping nunca pareceu tão propagado. Para ficar apenas num exemplo recente, em agosto o velocista americano Justin Gatlin perdeu o recorde dos 100 metros livres, que igualara em maio, e foi suspenso por oito anos por uso de esteróides. Nesta entrevista, Pound se define como um "idealista cínico" que sonha com um esporte limpo como no tempo em que foi atleta olímpico. Nos Jogos Olímpicos de Roma, em 1960, foi sexto colocado na final dos 100 metros nado livre, em que o brasileiro Manoel dos Santos foi medalhista de bronze. Como prova de seu otimismo, anuncia para breve um teste contra a nova ameaça – o doping por manipulação genética.

Veja – Casos de grandes atletas, como Justin Gatlin, provam que o doping não pode ser vencido?
Dick Pound – Não. O doping é um grande problema, mas temos feito progressos, como se pôde ver nas investigações recentes na Espanha, na França e na Itália (em que a polícia desbaratou redes de fornecimento de drogas a atletas). Não se trata apenas de um atleta aqui e outro ali tomando substâncias proibidas. Há equipes, médicos e treinadores trabalhando juntos para enganar. Para enfrentá-los é preciso uma combinação de esforços: programas de teste reforçados e uso do poder investigativo das autoridades públicas.

Veja – Isso significa que a luta antidoping virou caso de polícia?
Dick Pound – Significa que é preciso lançar mão de todos os poderes disponíveis. Sabemos quem são os atletas e onde eles estão. Sabemos mais ou menos o que eles tomam e quem são seus treinadores. Mas não temos o poder de fazer apreensões e intimar testemunhas.

Veja – Treinadores e médicos também devem ser suspensos?
Dick Pound – As regras do esporte já prevêem isso. O difícil é obter provas. Com atletas é fácil: se a prova e a contraprova dão positivo, acabou. Mas com técnicos e médicos é mais complicado. Por isso estabelecemos na agência um modelo que inclui a ajuda de autoridades públicas.

Veja – Em centenas de testes na última Volta da França de ciclismo houve apenas um caso positivo, o do campeão, o americano Floyd Landis. O senhor acha que ele foi o único a se dopar?
Dick Pound – Tenho certeza de que não.

Veja – Como o senhor explica, então, só uma descoberta?
Dick Pound – Sempre tivemos dificuldades com os procedimentos da União Ciclística Internacional (UCI). Ao ser chamado para o teste, o atleta tem até uma hora para se apresentar à sala de exame. Nesse lapso de tempo, fica sem nenhuma escolta. É tempo demais para quem quer manipular o teste, tomando substâncias mascarantes, por exemplo.

Veja – O que o senhor acha das desculpas que atletas como Landis e Justin Gatlin dão para seus casos?
Dick Pound – Precisamos ouvi-las, mas não precisamos acreditar nelas. Landis deu cinco ou seis explicações diferentes entre a prova e a contraprova. Primeiro, que era testosterona natural. Segundo, que foram umas cervejas. Terceiro, que foi uísque. Quarto, que foi excesso de exercício. E assim por diante. Ele terá, na apelação, oportunidade de apresentar desculpas e veremos se os juízes vão aceitá-las. Algo me diz que não.

Veja – Landis alegou que foi testado oito vezes antes e todos os resultados foram negativos. Como isso é possível?
Dick Pound – O nível de testosterona estava dez vezes acima do normal. Se essa fosse a condição normal do atleta, teria aparecido em testes anteriores. E isso nunca aconteceu, ponto final. O resultado positivo aconteceu no dia seguinte a uma etapa desastrosa, em que ele perdeu algo como oito minutos. Foi um dia de um esforço heróico, em que ele reduziu a diferença a menos de 30 segundos. Um desempenho fantástico, justamente no dia em que se achou a testosterona. Diante dos fatos não há desculpas.

Veja – Por que o senhor acusa a União Ciclística Internacional de não enfrentar o problema?
Dick Pound – É uma evidência. Quando se vê que a organização da Volta da França deste ano teve de excluir o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto e o sexto colocados de 2005 e que a prova e a contraprova do vencedor deram positivo, é sinal de que o problema está fora de controle e que a UCI foi incapaz de agir.

Veja – Por quê? Medo de prejudicar o próprio negócio?
Dick Pound – Imagino que essa seja uma possibilidade. Para mim, é muito estranho que uma organização de grande importância e abrangência como a UCI não consiga encontrar nenhum atleta dopado em seus testes.

Veja – O senhor também acusou a Fifa de não fazer o suficiente contra o doping. Que esportes estão atrasados nesse aspecto?
Dick Pound – O caso com a Fifa foi que, embora tenha adotado o Código Mundial Antidoping, ela não mudou suas regras internas. Continuamos pressionando por mudanças porque a Fifa representa o esporte mais popular do planeta, que tem doping como qualquer outro. O atletismo, o halterofilismo e a natação também têm problemas. Nenhum esporte tem doping zero.

Veja – Atletas acusados têm contratado advogados caros e agressivos – que contestam o procedimento dos exames. Isso ameaça a luta antidoping?
Dick Pound – Não. Se os atletas quiserem gastar o dinheiro deles com advogados caros, ainda assim vão acabar perdendo. Esse foi o caso de Tyler Hamilton (ciclista americano suspenso quando um teste detectou sangue de outra pessoa em sua amostra) e de Tim Montgomery (americano que teve cassado o recorde mundial dos 100 metros rasos). Provavelmente Floyd Landis vai pagar muito por um advogado. Seu teste também demonstrou que a testosterona, além de elevada, não era de origem natural. Chega uma hora em que, por melhor que seja o advogado, não se pode fugir das evidências.

Veja – No ano passado revelou-se que amostras da urina de Lance Armstrong, colhidas em 1999, tinham a proibida eritropoietina (EPO). Por que ele não foi punido?
Dick Pound – Tudo o que posso dizer é que o caso não foi totalmente explorado. O laboratório francês tinha amostras congeladas de 1998 e 1999. Elas foram analisadas anonimamente, para fins de pesquisa, e quinze deram positivo para EPO, substância que não podia ser detectada em 1999. Repórteres do jornal L'Équipe obtiveram – não sei como – cópias dos testes de Armstrong na época, cruzaram números e publicaram a manchete "Armstrong, a fraude". Dissemos à UCI que, se as regras da entidade permitissem uma desclassificação com base nisso, eles deveriam assumir suas responsabilidades e tomar uma decisão. Tudo o que fizeram foi protestar pelo vazamento das informações.

Veja – O senhor foi acusado de responsabilidade por esse vazamento.
Dick Pound – A AMA foi criada em 1999 e não poderia ter os formulários dos testes de Armstrong daquela época.

Veja – Um relatório de um especialista contratado pela UCI inocentou Armstrong.
Dick Pound – É claro que o relatório foi tendencioso. E não o inocentou de verdade. Disse apenas que havia a possibilidade de manipulação errada no laboratório francês. Mas se trata de um dos melhores laboratórios do mundo. Eles são muito cuidadosos. Se disseram que havia EPO nessas amostras, é porque havia mesmo.

Veja – É difícil confrontar atletas que são ídolos em seus países, como Armstrong, que o chamou de "antiético"?
Dick Pound – Essa é uma das razões pelas quais criamos uma agência internacional e independente. Depois do caso Festina (em que a equipe foi pega no maior escândalo de doping da história do ciclismo, em 1998), ninguém confiava mais na UCI. Depois que Juan Antonio Samaranch (então presidente do Comitê Olímpico Internacional) deu uma famosa declaração (minimizando o caso Festina), ninguém confiava mais no COI. E nenhum país confiava no outro para punir seus próprios atletas. Então concluímos que a única solução era criar uma agência absolutamente independente.

Veja – O jornal inglês Financial Times defendeu a liberação do doping. O que o senhor responde a essa proposta?
Dick Pound – Acho que é a procura de uma solução fácil para um problema complicado. Deve-se ter em mente que as pessoas não se dopam para ficar iguais às outras, e sim para obter vantagem. Se todo mundo estiver tomando 10 gramas de estanozolol (um esteróide proibido), que tal se eu tomar 20, 30 ou 40 gramas? Embarca-se em um círculo vicioso. Além disso, não se pode limitar a questão a uns poucos atletas de nível mundial, porque a mensagem resultante – para tornar-se um grande esportista, você tem de fazer isso – chegaria aos jovens no ensino médio. De repente, haveria 2 milhões ou 3 milhões de jovens tomando drogas e se teria um problema de saúde pública, mais que qualquer outra coisa.

Veja – Sua agência tem feito algo contra o doping genético?
Dick Pound – O doping genético é uma possibilidade concreta. Provavelmente, dentro de poucos anos ele será usado. Mas a diferença em relação ao doping tradicional, se é que posso chamá-lo assim, é que a agência não está esperando que ele se torne problema antes de procurar uma solução. Da década de 1960 à de 1990, o movimento esportivo deixou o doping tradicional fugir do controle. Agora, começamos quatro anos atrás a nos encontrar com os principais geneticistas do mundo. Acho que teremos um teste simples disponível na época em que começarem a usar o doping genético. Chegaremos na frente.

Veja – Isso já acontecerá nos Jogos de Pequim, em 2008?
Dick Pound – Talvez seja um pouco cedo demais, mas quem sabe? Estamos financiando e encorajando pesquisas e trabalhando ao máximo para produzir um teste não invasivo que possa determinar a diferença entre genes originais e alterados.

Veja – O senhor pode dar mais detalhes? Haveria um banco de DNA de atletas? O teste seria com amostras da saliva?
Dick Pound – Não posso dar esse tipo de detalhe. Sou apenas um advogado tributarista, não entendo muita coisa a respeito dos detalhes científicos. Mas sei que será algo simples.

Veja – Dias antes das Olimpíadas de Atenas, em 2004, o senhor anunciou um teste para detectar hormônio de crescimento humano, o que teria feito muitos atletas desistir de competir. A ameaça pode dissuadir trapaceiros?
Dick Pound – Nós realmente dispúnhamos de um teste para HGH. Foi assim que Tyler Hamilton foi pego no ciclismo. Mas infelizmente houve um erro de manipulação da contraprova no laboratório e ele não perdeu a medalha de ouro. Depois não pudemos fazer mais testes, e não basta fazê-los apenas na época das grandes competições. É preciso ir aos treinamentos, sem aviso prévio, mas não temos anticorpos de HGH suficientes. Trabalhamos com a indústria farmacêutica para produzir a quantidade adequada a um número maior de testes.

Veja – Havia doping no seu tempo de atleta?
Dick Pound – Não. Isso começou com os levantadores de peso e os arremessadores de peso, disco e martelo no fim dos anos 1960. Até 1968 não havia sequer exames antidoping nos Jogos Olímpicos. Na natação, o máximo que fazíamos para obter vantagem sobre os adversários era depilar as pernas.

Veja – A revista inglesa The Economist chamou-o de "idealista nos moldes vitorianos". Sua luta não é utópica?
Dick Pound – Estão me chamando de velho? Gosto de pensar em mim mesmo como um idealista cínico. Sei como o esporte deveria ser, mas sou cínico o bastante para saber que há pessoas que farão qualquer coisa para vencer. Acho que isso destrói o esporte e é injusto com os outros competidores.

Veja – Quais os maiores desafios da luta antidoping?
Dick Pound – O primeiro é que muitas federações internacionais parecem não insistir para que os países afiliados tenham programas antidoping efetivos. O segundo é que levará muito tempo até que o público compreenda os perigos éticos e físicos do doping. A Interpol dispõe de uma estatística segundo a qual o mercado das substâncias dopantes, como os anabolizantes, é maior que o tráfico de maconha, o de cocaína e o de heroína combinados.

Veja – Isso não prova que tentar detê-lo é uma utopia?
Dick Pound – Não. O problema é que as autoridades sempre se concentraram nas chamadas drogas recreativas, como a maconha. Vai levar tempo para pensarem nos esteróides e começarem a processar quem compra, tem ou vende substâncias do gênero. Por outro lado, é verdade que a entrada do crime organizado nesse mercado só complica as coisas.

Veja – O senhor presidiu o comitê que investigou a atribuição dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2002 a Salt Lake City, quando membros do COI receberam presentes em troca de votos. O doping não seria apenas um aspecto da corrupção generalizada no esporte?
Dick Pound – O caso de Salt Lake City chegou perto, mas não chegou a ser de corrupção. Foi de comportamento antiético. Ele mostrou que existe um problema. Mas, assim como um alcoólatra só consegue lidar com o problema a partir do momento em que o admite, será impossível encontrar uma solução enquanto o esporte não fizer o mesmo.

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