Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 16, 2006

Roberto Pompeu de Toledo VIVA LA MUERTE!

VEJA

Que tempos, para um pai na Faixa de Gaza...
Ainda bem que estamos distantes. Ou não?

Para se ter uma idéia do que se passa no favelão conhecido como Faixa de Gaza, muito mais úteis do que acompanhar o noticiário sobre mortos e feridos ou conhecer os comunicados de Israel ou da Autoridade Palestina são duas conversas entre pai e filho relatadas numa recente reportagem do jornalista Jeffrey Goldberg para a revista The New Yorker. A primeira tem como cenário a sala coberta de retratos de "mártires" (os homens-bomba palestinos) da casa de Abu Hussein, um dos líderes das brigadas especializadas em disparar foguetes contra o sul de Israel. Abu Hussein é militante do Hamas, o grupo político-terrorista-religioso hoje majoritário entre os palestinos. Enquanto conversava com Goldberg sobre o Hamas (que ele considera estar ganhando a guerra contra Israel) e a qualidade dos rústicos foguetes Qassam (que freqüentemente acabam caindo no próprio território palestino), seu filho de 15 anos se mantinha ao lado, sentado no mesmo sofá.

"Sim, nós não temos tanques", dizia. "Mas temos mártires. Olhe para os rostos na parede. Todos nós ansiamos por morrer para ganhar de volta nossa terra. Os judeus preferirão deixar a Palestina a morrer. Essa é a diferença." A certa altura, Abu Hussein estreitou o filho, estudante secundário, num abraço: "Eu quero que ele termine os estudos, mas, se acontecer de ele morrer, não me importo, desde que morra como um mártir e leve alguns judeus consigo. Ficarei feliz, se ele morrer assim". O filho sai da sala e volta com um retrato em que aparece com uniforme de combate e um fuzil AK-47 na mão. "Esta é a minha foto de mártir", explica ao visitante. Se eu morrer, é ela que vai aparecer nos pôsteres em Gaza." Todos os seus colegas de escola têm suas "fotos de mártir", explica o menino. O pai acrescenta: "Nós ficamos felizes em sacrificar nossa família para ganhar essa batalha". O filho ri, achega-se ao pai e comenta: "Eu sou seu filho único, e ele quer que eu morra".

Na segunda conversa, o jornalista da The New Yorker está diante de Rafiq Hamdouna, antigo líder da Fatah, a organização rival do Hamas – leiga, mais pragmática e adepta de uma saída negociada com Israel. "A única solução realística é a dos dois estados", diz Hamdouna, afirmando sua oposição à tese da destruição de Israel do Hamas. Ele acrescenta porém que o cerco de Israel e a tentação pela morte violenta entre os palestinos dificultam a aceitação de um compromisso sem ardor religioso nem fantasias de heroísmo. Para exemplificar como os espíritos estão envenenados, conta que seu filho Basel outro dia lhe disse que gostaria de se transformar em mártir. "Tive de ficar calmo", prosseguiu. "Disse a ele: 'Basel, você sabe o que acontece quando você se explode? Você não vai para o paraíso. Você vai para um buraco na terra e se cobre de sujeira'." Hamdouna encerrou o assunto com um comentário desacorçoado: "Todo pai em Gaza tem a mesma conversa com os filhos. Todo pai enfrenta isso".

Na Guerra da Espanha, o general Millan Astray, um dos comandantes do lado franquista, celebrizou-se pela divisa "Viva la Muerte!", que usava como grito de guerra. Era um brado "necrófilo e insensato", como disse o filósofo Miguel de Unamuno, corajosamente, na cara de Millan Astray, num famoso episódio. Na primeira conversa, a do militante do Hamas com o filho, a celebração da morte adquire um caráter doméstico, manso e carinhoso que a torna mais tenebrosa do que se tivesse lugar num evento político. Na segunda conversa, o pai se utiliza da ducha fria do racionalismo para combater as ilusões que ameaçam contaminar o filho. Mas o comentário final de que "todo pai enfrenta isso" mostra que ele tem consciência de lutar contra a corrente. As circunstâncias são desfavoráveis demais, os espíritos estão embriagados demais. Ele não se pode deixar levar pela ilusão de que seu argumento conquistou o filho.

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Sorte que a Faixa de Gaza seja uma realidade distante para nós, brasileiros. Ou será que, pensando bem... Nos favelões do Brasil, os meninos são atraídos pela legenda dos homens do tráfico. Eles sabem que aquilo não acaba bem. Se a morte escapa de vir da polícia, chegará na guerra entre facções. Um pai (ou mais freqüentemente uma mãe) nos favelões brasileiros não enfrenta situação muito diferente da dos pais de Gaza. Também entre eles as circunstâncias são desfavoráveis demais para a vitória da racionalidade, e os espíritos estão embriagados (ou entorpecidos) demais. O "Viva la Muerte" cativa também os seus filhos.

P.S.: Num artigo na Folha de S.Paulo em que justificou (ou melhor: apoiou) as falcatruas do PT no governo, a escritora Rose Marie Muraro saiu-se com a seguinte e lapidar afirmação: "Ser moral dentro de um sistema imoral é legitimar a imoralidade". Ô Rose Marie!!! Pela primeira vez alguém vem a público para, diante da famosa disjuntiva (de Stanislaw Ponte Preta? Millôr? Barão de Itararé?) "Ou se restaure a moralidade ou nos locupletemos todos", lavrar sua opção pelo "locupletemo-nos".

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