Para os jovens de todas as épocas, que sempre souberam se engajar na
defesa de suas generosas utopias, o trabalho artístico e cultural
jamais esteve dissociado de uma elevada visão ética. O anseio às
vezes afobado de "salvar" o mundo, de revolucionar conceitos, padrões
estéticos ou comportamentos muitas vezes conduziu a caminhos
tortuosos do radicalismo, das razões estapafúrdias para o senso
comum. Entretanto, nunca o espírito dos produtores de arte e cultura
descambou para o cínico desprezo ético, para o langoroso "tanto faz"
no julgamento dos costumes e da ação política e, muito menos, na
covarde capitulação de princípios.
Se houvesse, por parte desses artistas e pensadores, a perda do
sentido crítico e do ânimo na defesa de valores, a própria qualidade
da produção cultural estaria definitivamente comprometida, tal como a
dos que se tornam subservientes ao mecenato das ditaduras e procuram
enfeitar seus áulicos argumentos com lantejoulas soi-disant
filosóficas - que podem variar da "esperança e medo" de Spinoza às
"mãos sujas" de Sartre.
Se em qualquer ramo de atividade o desprezo pela ética é condenável,
no campo artístico e cultural esse desprezo é especialmente abjeto,
porque implica enfraquecimento de caráter de toda a sociedade,
eliminando-lhe o impulso primordial do espírito crítico, sem o qual
civilização alguma é viável. A degradação político-institucional pode
ser superável, mas a degradação ético-cultural é absolutamente
intolerável, pois distorce e aniquila os fundamentos axiológicos de
uma sociedade - e isso não tem volta.
Em entrevista dada ao jornal italiano Corriere Della Sera de domingo,
o frade dominicano, competente escritor - de mais de 30 livros - e
notório mentor do presidente Lula, Frei Betto, confessou o que não
diria (por vergonha) para veículo brasileiro. Disse ele que o
programa Bolsa-Família é assistencialismo puro, não muda a estrutura
social e reconduz (os contemplados) à miséria, mas garantirá a
reeleição de Lula, porque aqueles 11 milhões de famílias miseráveis -
que julgam receber "salário" - são votos garantidos ("tutti votti
garantiti"). Disse mais, que até se conformava com o fato de seu pai
ter morrido antes do início do governo Lula, pois, certamente, ele
não teria suportado tantos sonhos esvaídos em nada, as esperanças
vencidas pelo medo de nutrir novas expectativas.
À página 223 de seu recente livro Do Golpe ao Planalto, o competente
jornalista Ricardo Kotscho - que não perdeu seu talento de bom
repórter enquanto servia ao Planalto - elimina, de forma definitiva,
qualquer dúvida que pudesse restar quanto à participação direta do
presidente Lula no indecente cambalacho entre o PT e o PL, ao
descrever a tensa reunião, no apartamento funcional do deputado Paulo
Rocha (PT-PA), da qual participaram, além de Lula e Alencar, os então
presidentes do PT, José Dirceu, e do PL, Valdemar Costa Neto, bem
como vários dirigentes dos dois partidos. Diz Kotscho que "o impasse
se dava na questão da ajuda financeira que o PL tinha pedido ao PT
para fazer sua campanha"; que, "no início da noite, os dirigentes dos
dois partidos anunciaram que a aliança estava selada, como queriam
Lula e Alencar"; e que "somente três anos depois, quando estourou o
'escândalo do mensalão'", ele, Kotscho, "ficaria sabendo que o valor
solicitado era de R$ 10 milhões".
Os repórteres setoristas Eduardo Scolese e Leonêncio Nossa fizeram
revelações inacreditáveis em seu também recente livro Viagens com o
Presidente. Eis alguns tópicos. Numa audiência com a ministra do Meio
Ambiente, sobre a transposição do Rio São Francisco, disse o
presidente: "Marina, essa coisa de meio ambiente é igual a um exame
de próstata: não dá pra ficar virgem toda a vida. Uma hora eles vão
ter que enfiar o dedo no c... da gente. Então, companheira, se é pra
enfiar, é melhor que enfiem logo." Tendo um segurança ido devagar
para lhe trazer a toalha que pedira, para enxugar o suor enquanto
abraçava e beijava admiradores numa cidadezinha da Bahia, disse o
presidente: "Olha o bundão, lá vai o bundão pegar a minha toalha."
Numa festa na Embaixada em Tóquio, disse o presidente: "Tem horas,
meus caros, que eu tenho vontade de mandar o Kirchner para à p.q.p.."
E mais tarde: "A verdade é que nós temos de ter saco para agüentar a
Argentina(...) ter muito saco." Ou, então, sobre o Chile: "O Chile é
uma merda, uma piada. Eles fazem os acordos lá deles com os
americanos. Querem mais é que a gente se f... por aqui. Eles estão
c... para nós."
Temos aí três tipos de indignidade. Primeiro, é a exploração enganosa
de dezenas de milhões de miseráveis, que julgam receber "salários"
com o Bolsa-Família, retribuem em votos e permanecerão na miséria.
Segundo, é a participação (comprovada) na mais aberrante compra de
apoio partidário de que se tem notícia na História da República. E,
terceiro, é a maior falta de compostura que já se viu num chefe de
Estado e de governo - inclusive no que se refere ao desrespeito à
digna figura feminina de uma ministra, a um humilde profissional da
segurança pessoal e a nações amigas.
Mas há grupos de artistas e intelectuais que repudiam as mãos sujas
de mensalão, de enganação, de submissão, de acordão. Entre eles, o
grupo que se reuniu quarta-feira em São Paulo, com Juca de Oliveira,
Irene Ravache, Fulvio Stefanini, Cacá Rosset, Ivaldo Bertazzo,
Christiane Tricerri, José Possi Neto, Toni Ventura, Sérgio Bianchi,
Marcos Weinstock, John Neschling, Patrícia Melo, Leôncio Martins
Rodrigues e tantos e tantos mais, a partir dos quais a esperança
poderá vencer o medo - de que se enterrem, na lama reinante, nossos
mais caros valores.