Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 03, 2006

João Ubaldo Ribeiro Psiquiatria brasileira faz avançoz

Fui um dos piores repórteres da história do jornalismo brasileiro (quase digo “o pior repórter que este país já viu”, esse negócio pega) e até hoje tenho inveja dos bons repórteres. Deve ter sido por isso que dei um tom de notícia ao título de hoje. É o tipo de matéria que sempre quis fazer e nunca fiz direito. Continuo sem saber como é, mas creio que, assim ou assado, estou cumprindo uma missão de repórter, o sagrado mister de informar, ao trazer a público umas novidades que certamente interessarão e mostrarão que a mídia não se ocupa somente de notícias ruins e previsões sombrias.

Meu valentíssimo psiquiatra, como todo psiquiatra competente, não regula bem. Ele encara isso filosoficamente e, se provocado, reage com bonomia, acho que já perdeu a paciência de explicar que ninguém, notadamente psiquiatras e escritores, é normal. Sabedor disso, tenho ignorado o singular brilho nos olhos que ultimamente domina suas feições, quando falo, o que é freqüente, na situação nacional. Não sei, alguma coisa diferente, como se ele estivesse guardando um segredo que me quisesse contar e não pudesse.

Mas finalmente pôde. Eu estava explicando que, outro dia, tivera uma crise de afasia acompanhada de prostração, depois de ver o presidente apoiando dois candidatos a governador, apenas um do partido dele. Como é que era isso? Todo dia eu amanhecia com um sintoma diferente e geralmente pior. Eu tinha ouvido certo? Ambos os candidatos pensavam como o presidente? Se ele fosse carioca, baixava uma Medida Provisória autorizando-o a votar nos dois? — Afasia e prostração? — disse ele.

— É, não acertava a falar nada e caí derreado na poltrona.

— Boca cheia d’água? — Boca cheia d’água! Isso mesmo! Babando, aliás. E rangendo os dentes, me deu também rangedeira de dentes.

— Eu ia lhe perguntar exatamente isso.

Sintomatologia clássica, clássica, sim. Acho que já podemos chamá-la de clássica. O quadro não está completo, é claro, mas é praticamente impossível encontrar precisamente os mesmos elementos em cada caso.

— Quadro clássico? Cara, não brinque! Eu desaparafusei de vez? Você vai me internar? Que caso clássico eu sou, esquizofrenia paranóica maníaco-depressivaobsessiva-compulsiva? — Não vamos ser dramáticos. Seu caso é cada vez mais comum. Tão comum que eu estou metido numa briga séria na comunidade científica, você não sabe. Esses sintomas que você está tendo são dos mais brandos, mas há casos muito graves. Tanto assim que já é ponto pacífico internacionalmente e vai ser estudada pela Organização Mundial de Saúde, a existência de uma síndrome complexa epidêmica entre os brasileiros, com bastante especificidade para a declararmos uma enfermidade nacional. Agora mesmo, estou sabendo de uma junta médica encarregada de uma senhora muito respeitável, de uma família tradicional, que está numa situação tristíssima depois que, inadvertidamente, deixaram a tevê ligada no programa eleitoral com ela na sala. Os sintomas dela são os mais variados possíveis, desde ficar fazendo bé-bé pela sala e andando de quatro, a repetir o nome dela o dia todo e recitar Olavo Bilac.

— E você está metido nesse caso? Você disse que estava metido numa briga.

— Não, se eu estivesse no caso, não falaria nele. Minha briga é outra, é isso aqui.

Mexeu numa gaveta e pegou um frasquinho cheio de pílulas azuis.

— Que é isso, Viagra em superdos e ? — Não, mas é interessante que você diga isso, porque ele de fato tem alguns componentes que agem de forma semelhante ao Viagra. Mas é um radical de altíssima complexidade, inventado aqui mesmo no Brasil, que já foi patenteado e agora só espera liberação, os testes foram excelentes.

Ainda não tem nome. Querem botar Brasilan, mas eu acho apelativo, embora seja obrigado a reconhecer que o outro que eu sugeri era impossível, eu sugeri Merdex. Eu sou contra esse negócio, tenho lutado contra a adoção.

— Mas o que é que esse remédio f a z ? — Ah, ele induz a um estado de lerdeza, indiferença, resignação, bom humor e falta de vergonha na cara, digamos assim. Tudo apropriado para os males psíquicos do brasileiro.

— Bem, eu ousaria dizer que é o que já está me parecendo no momento.

— Pois é, mas há uns focos de resistência que podem aumentar, há o perigo de que se comece a pensar de repente.

O melhor é prevenir. Por isso eu sou contra, querem acabar de abestalhar os brasileiros para sempre, daqui a pouco incluem umas caixinhas na cesta básica. O sujeito tuberculoso procura um hospital público, não acha vaga nem atendimento, mas lhe dão um Brasilan de 50 mg e ele volta para casa achando tossir o maior barato e morrer maior ainda. Isso me impõe um dilema.

Como médico, meu dever é procurar curar meu paciente ou fazer com que ele se sinta melhor. E não vou negar que essa pílula aí vai quebrar o galho de muita gente. E não sou responsável pela situação do país. Ou sou? Você é? — Bem, acho que todo mundo é um pouco, mas isso é outro papo. O que é que você vai fazer, se aprovarem o Brasilan? — Bem, eu já comecei a tomar este mês. Como é que eu vou encarar o resultado das eleições? Psiquiatra também pira.

— Não dá pra descolar uma amostrinha pra mim, não, aí? — disse eu.



O Globo

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