Folha de S. Paulo
5/9/2006
O Legislativo concentra todo seu esforço em renegar a atribuição que lhe dá nome; quem legisla é o Executivo
O NOME JÁ diz tudo: "esforço concentrado". O esforço que os deputados precisam fazer para ir à Câmara. Não por todo o mês, Deus os livre, mas só por três dias -ontem, hoje e amanhã-, daí o "concentrado". E "concentrado" ainda pelo bolo de matérias que lhes cabe votar. Com nova dose de esforço e de maneira não muito diferente de quem se livra de um monte de papéis sem interesse. No caso, só de iniciativa do governo, cinco projetos com pedido de urgência e 20 medidas provisórias. Lá no final da fila, a proposta de extinção do voto secreto dos parlamentares, ao qual está atribuída a dificuldade de aprovação de cassações de mandatos.
Para chegar à votação dessa proposta, as anteriores da fila precisam estar resolvidas. É claro que não haveria tempo de votá-las, pelo processo normal, em três dias (e até ontem com o número de presenças incerto). O presidente da Câmara, Aldo Rebelo, encaminhou a sugestão, não inovadora, mas muito significativa. Pediu ao presidente da República a retirada dos projetos governamentais e, aos líderes partidários, um acordo para votar as medidas provisórias em um único bloco. Vinte medidas provisórias em uma só tacada: um pacotaço. Para que o hábito não se perca.
Nas votações de projetos um a um, é notório que grande parte dos deputados vota sem ao menos saber o que é o projeto. Segue o líder ou a onda. No pacotaço, várias medidas provisórias ficam destinadas à mesma consideração. E entre elas há liberações de verbas cuja soma está bem para lá de bilionária. Mas tudo isso faz parte da vida parlamentar cada vez mais dissoluta.
Se, porém, a votação em bloco de matérias tão díspares já é, por si só, um procedimento antiparlamentar e antidemocrático, ainda mais grave é essa evidência que o pacotaço torna mais eloqüente: a quantidade de medidas provisórias que jorram da Presidência da República.
Desrespeitosas da Constituição não só como método mas também pela violação dos requisitos para justificá-las. O que há, por exemplo, da combinação de "relevância e urgência", exigida pela Constituição para as medidas provisórias, na autorização para que centrais sindicais sejam reconhecidas como representantes oficiais dos trabalhadores em entidades e setores públicos? Medidas provisórias com tal relevância e urgência são comuns.
O Legislativo não abandonou só os valores éticos e culturais que lhe seriam próprios, e um dia foram. Concentra todo o seu esforço em renegar a atribuição primordial que lhe dá nome. Quem legisla é o Executivo, é a Presidência da República. A deformação não é nova, mas nem por isso é menos aberrante: o regime do Brasil é uma ditadura parcial, sem horizontes ilimitados e sem sujeições autoritárias, mas, como condução administrativa e ordenação legislativa, uma forma ditatorial. A pequena ditadura da medida provisória.
Entrevista:O Estado inteligente
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