Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 17, 2006

DORA KRAMER: Notícias de uma eleição estranha

ESTADO


Político não reclama em voz alta do eleitor. Não é raro, porém, ouvi-los se queixando pelos cantos da injustiça de serem moralmente contestados sem que ninguém se dê ao trabalho de observar o fisiologismo e a frouxidão ética que vigora do outro lado do balcão - no eleitorado que cobra muita correção de conduta, mas é sôfrego por favores, de preferência em espécie.

Nesta eleição, então, em que a defesa da ilegalidade já virou tese de acadêmico, incorporou-se às justificativas de votos e, mais um pouco, vira bandeira obrigatória de quem se pretende defensor dos fracos e oprimidos, o ambiente deteriorou-se ao nível do espanto.

O personagem das duas histórias que serão contadas a seguir foi o deputado Raul Jungmann, vice-presidente da CPI dos Sanguessugas, mas poderia ser qualquer outro. Os casos aconteceram em Pernambuco, mas ocorrem em toda parte.

No primeiro, o protagonista é um eleitor pobre da periferia do Recife. Jungmann fazia campanha em Camaragibe quando foi abordado pelo homem: 'Bote para lascar em cima desses sanguessugas, deputado.' Durou pouco a animação com o fervor cívico do eleitor, pois veio em seguida o complemento: 'Mas bote também dez reais aqui na minha mão.'

O homem falou alto, sem cerimônia. Jungmann baixou a voz, explicou que isso era compra de voto, crime. 'Mas bote assim mesmo, ninguém vai se incomodar', insistiu o sujeito, ao mesmo tempo cobrando a imposição da moralidade aos políticos e praticando a imoralidade sem pejo.

O segundo episódio aconteceu na Faculdade de Direito da Escola do Recife. Um estudante classe média defendeu o raciocínio segundo o qual não haveria diferença entre o crime organizado e o Estado porque traficantes patrocinam o bem-estar em determinados grupos sociais, assim como faz o poder público; e cometem crimes da mesma forma como se infringem as leis na esfera social.

'Duas pessoas de realidades sociais diferentes compartilhando a mesma dualidade de pensamento, exibindo a mesma visão de nivelamento por baixo que, no fundo, é também muito semelhante ao que disse o traficante Marcola à CPI quando apontou ausência de autoridade moral nos deputados para cobrar punição aos crimes dele', analisa Jungmann, desencantado com o que tem visto em suas andanças de campanha.

'O cenário pode ser resumido assim: é a classe média revoltada achando que todos os políticos são ladrões porque a política não passa de uma ladroagem só e a classe mais pobre desapontada porque a campanha não tem brindes nem showmícios e, ao mesmo tempo, satisfeita com o assistencialismo numa espécie de cidadania de resultados.'

O quadro, embora não seja novo é dantesco. 'O sentimento de que nada importa, tudo é permitido, que só o campo do mal existe e, portanto, todos devem se organizar em terreno contaminado, é uma evidência de que chegamos ao osso, não há mais como fazer política dessa forma.'

Raul Jungmann admite que a responsabilidade é multipartidária e vem de longe. Mas acha que ao PT cabe a grande culpa pela eliminação da 'alteridade', a perspectiva de que existe um outro modo de fazer as coisas.

'Quando o PT não só aderiu como aprofundou e passou a enaltecer as deformações, ele extinguiu na visão das pessoas a hipótese de uma ética alternativa, tudo passou a ser uma coisa só. Até quem nunca ousou fazer as coisas da forma como são feitas agora, agora é visto como o criador de práticas às quais o PT teria apenas sucumbido, posando como uma frágil criatura das circunstâncias.'

Bem, mas e a saída para essa situação cujo agravamento parece próximo da culminância e da instituição do vale-tudo como regra geral?

'Não tem mágica: é reforma política profunda, sem maquiagem, meias medidas ou adiamentos.' Na opinião de Raul Jungmann, o centro da questão está nos métodos de formação de maiorias no Congresso, sem as quais presidente nenhum governa.

'Esse é o retrato que aparece ao fundo de todos os escândalos, desde a redemocratização. São os instrumentos usados para a cooptação dessas maiorias, e também para a chegada ao poder, que levam à degeneração da política. E, portanto, sua utilização está esgotada. Há que se encontrar outras maneiras de o eleitor se relacionar com seus representantes e de os governos obterem sustentação no Parlamento.'

De fato e ficção

Está no sítio do Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco na internet: a prestação de contas do mês de agosto da campanha para deputado federal do ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti registra exatos R$ 5.784,89 a título de receita.

Na rubrica despesas, zero gastos em todos os itens listados.

Ou seja, ao mesmo tempo em que alguns candidatos e partidos apresentam gastos bem superiores aos da campanha passada a fim de se adequar à nova realidade de vigilância sobre o uso do caixa 2, outros prosseguem atuando nos conformes da velha ordem. Severino seguramente não é o único.

 

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