Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, setembro 04, 2006

Denis Lerrer Rosenfield Programa de (des)governo

O ESTADO DE S.PAULO

O programa de governo do PT caracteriza-se por generalidades, falta de metas e pouco comprometimento com as questões mais essenciais do Estado brasileiro, como as urgentes reformas, com destaque especial para a da Previdência. Trata-se, na verdade, de um programa "cabe tudo", desde propostas radicais de transformação da sociedade até a modernização do capitalismo brasileiro. O programa, neste sentido, tem um nítido contorno eleitoral, feito para ganhar votos tanto à esquerda quanto à direita. A sua mensagem é: fica para depois da conquista do poder a discussão sobre a realização ou não das reformas de Estado.

Não deixa de despertar desconfiança a elaboração desse programa de governo, porque, num certo sentido, ele é muito mais genérico e menos radical que os documentos que o embasaram nas várias comissões do PT. A consideração eleitoral foi aqui certamente central, pois o radicalismo político não é, em geral, bem aceito pelos brasileiros. Ocorre, contudo, que a Comissão de Programa de Governo foi composta de radicais, que, em seus artigos no site do PT, advogam por transformações profundas da sociedade brasileira, rumo ao socialismo. Logo, a questão que se coloca é: por que um grupo de radicais, que advogam por um socialismo autoritário, elabora um programa de governo que evita, escrupulosamente, qualquer radicalismo? Teriam eles mudado? Converteram-se ao "neoliberalismo"?

Eles certamente fazem a distinção entre a conquista do poder e a transformação radical da sociedade, que exige condições objetivas para sua realização. Neste primeiro momento eleitoral, seu objetivo central consiste na conquista do poder, o que pressupõe evacuar a proposta de governo de qualquer forma de radicalismo. Eles têm, ademais, plena consciência de que o Brasil não apresenta "condições objetivas" para a realização de uma proposta socialista, tal como eles a vislumbram. Mais vale, portanto, calar pelo momento, aguardando que tais propostas possam surgir ou ser provocadas no futuro. A generalidade do programa é de tal monta que deixa qualquer possibilidade aberta, inclusive essa de transformação da sociedade. Na verdade, eles estão transferindo esse problema para depois das eleições, dependendo da correlação interna de forças no partido e no próximo governo.

O programa mais se caracteriza por seus silêncios e omissões do que por aquilo que explicitamente propõe. As grandes reformas do Estado foram abandonadas e substituídas por referências indiretas, que nada implicam de compromissos específicos. Fala-se da Previdência em geral, sem nenhum compromisso com a reforma previdenciária. Fala-se de impostos, sem nenhum compromisso com a reforma fiscal. Fala-se de problemas trabalhistas, sem nenhuma referência a uma moderna reforma dessa legislação. A exceção reside na reforma política, por esta ter, na visão desses estrategistas, maior apelo na situação atual, por desviar a atenção da corrupção empreendida pelo atual governo e por seu partido. Tudo é, assim, debitado na conta dos problemas estruturais da sociedade brasileira.

Uma nota introdutória é comum a esse programa e ao de 2002, a de caracterizar o governo FHC como responsável por todos os males da realidade brasileira: uma "catástrofe". Recupera-se a formulação da "herança maldita", que funcionaria, no nível do discurso, como uma forma de congregar os eleitores e a militância do PT em torno de uma crítica genérica ao capitalismo. Criam-se, de nova conta, as condições de uma esquizofrenia entre o discurso e o que o governo Lula de fato fez ao seguir a política macroeconômica do governo anterior, dita, paradoxalmente, "neoliberal". O PT continua se recusando a qualquer revisão doutrinária de suas idéias. O caldo de cultura partidário continua "radical" e o governista, "pragmático", avesso aos radicalismos políticos. Digno de menção é o fato de que nessas mesmas páginas introdutórias o documento reitera seus "compromissos" com os "movimentos sociais", em cuja rubrica estão incluídos MST, MLST e CPT.

Chama igualmente a atenção no texto a ausência de um comprometimento com uma redução geral da carga tributária, o que se poderia traduzir por uma ampliação do empreendedorismo e por maiores iniciativas empresariais, que satisfariam, indistintamente, todos os setores da economia. Na contramão de tal tendência, o documento contempla o atendimento de pleitos setoriais, que viabilizaria a própria posição do governo e do Estado, que conservaria a sua posição de distribuidor geral de favorecimentos. Desta maneira, o Estado brasileiro manteria a sua atual estrutura corporativa. No estado atual deste programa, está ausente uma modernização dessas relações, com uma maior autonomia concedida à sociedade em seu conjunto.

Particular atenção deve ser dada ao uso da palavra democratização, pois no linguajar petista ela significa uma radicalização das propostas socialistas autoritárias, via conselhos populares e democracia dita participativa. Trata-se de uma reafirmação da experiência dos sovietes com outro nome, um nome que não assuste e possa ser acolhido pela opinião pública brasileira. Mais especificamente, significa um aparelhamento das funções do Estado pelo partido, que se organizaria de uma forma aparentemente "popular", como já ocorre e ocorreu em alguns Estados e cidades que fizeram e fazem a experiência do dito orçamento participativo. O seu alvo, a longo prazo, é o controle, se não a destruição, da democracia representativa. Assim, o documento defende a "participação" na formulação do "orçamento" e o controle das políticas públicas "por meio de conselhos e comitês representativos". Ainda num claro viés autoritário, o programa trata genericamente da "democratização dos meios de comunicação", deixando a porta aberta, segundo consta de um dos documentos preliminares, para um maior controle dos meios de comunicação em geral, inclusive com políticas conselhistas de renovação das concessões públicas de rádio e de televisão.

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