Declínio da MPB
Daniel Piza
Não é de hoje que os grandes nomes da MPB já não são os mesmos. O último CD excelente de Chico Buarque foi Paratodos, que é de 1993; o de Caetano, Circuladô, 1992. São os dois maiores compositores surgidos nos festivais do final dos anos 60, responsáveis por dialogar com a bossa nova e o samba-canção com letras mais inventivas e críticas. E há mais de dez anos não acertam em cheio, exceto por uma ou outra música e por uma qualidade média que sempre se espera deles. O mesmo se pode dizer de outros da mesma geração, como Djavan, Jorge Ben, Milton, Gilberto Gil. Suas canções mais recentes ou parecem versões daquelas que os consagraram, livres de idéias melódicas e verbais novas, ou simplesmente não têm viço, não combinam palavras e sons de forma memorável.
Reação imediata: 'Natural, eles têm mais de 60 anos e agora é a vez dos jovens.' Felizmente, eles são os primeiros a reconhecer isso, já que a crítica musical que deveria fazê-lo não o faz - talvez por medo de incomodar medalhões, talvez por falta de ter o que apontar para o lugar. Chico disse há alguns anos, já mais preocupado com sua prosa de ficção (que melhorou de livro em livro, apesar do preconceito da classe literária), que 'música popular é coisa para jovens'. Caetano declara em texto no novo CD que já fez uma 'quantidade ridícula' de canções ruins. Mas será que é mesmo uma questão meramente de vitalidade, de jovialidade? Comento em breve o novo CD de Bob Dylan, por exemplo; ele também já não é o mesmo - como Paul McCartney tampouco é -, mas ainda faz algo ambicioso. Leonard Cohen, Lou Reed, há alguns cancionistas da velha-guarda contracultural que seguem produzindo com frescor.
O novo CD de Caetano, Cê, decepciona. Tem arranjos de rock, mas de um rock bem amador, de garagem, com riffs que se repetem ao cansaço e não combinam com sua voz, de pouca intensidade nos graves. Ao mesmo tempo, as melodias e as letras namoram uma breguice ou brejeirice, sem com isso obter o efeito que um Raul Seixas - de quem se ouvem ecos em Não me Arrependo - obtinha de tal combinação. Mesmo quando há uma sonoridade mais interessante, como em Minhas Lágrimas, o desenvolvimento deixa a desejar, ou, como em Deusa Urbana, não descola de antigas canções como as de Uns. Decididamente estamos muitos andares abaixo do autor de Coração Vagabundo ou Estrangeiro.
Penso também no que se poderia chamar de 'segunda fase' de Tom Jobim, sendo a primeira a bossa nova 'stricto sensu'. Com Matita Perê, cuja faixa-título era uma obra-prima de andamentos e dissonâncias, Tom renovou sua linguagem, dialogou mais intensamente com seu ídolo Villa-Lobos, parecia uma criança com PlayStation novo. Vale notar, então, que Tom é exceção, não só na música brasileira, mas também na literatura, na pintura, no cinema - pois a triste regra dos criadores no Brasil parece ser a de uma maturidade acomodada, diluidora, não raro entregue à autoparódia. Caetano e Chico não estariam, assim, em ritmo muito distinto do de Rubem Fonseca ou Carlos Heitor Cony. Mas eu preferiria que tivessem agido como Tom - ou Machado de Assis ou Iberê Camargo, este que foi ao apogeu justamente na reta final.
Quanto às novas gerações, é claro que existem bons compositores, como Zeca Baleiro, Lenine, Seu Jorge e Marcelo Camelo, de Los Hermanos. Acho, porém, que eles ainda não estão na mesma ordem de grandeza de Chico, Caetano e os outros - não só como letristas, mas também como melodistas. Pode-se argumentar que também em outros países as novas gerações não estão no mesmo plano que seus antecessores. Mesmo assim há compositores muito bons, de estilos tão diferentes quanto Elvis Costello (o Costello de Painted from Memory e North), Tom Waits e Thom Yorke, do Radiohead, grupo cuja inovação é tão marcante que tem tido canções gravadas por músicos de jazz como Brad Mehldau e Jamie Cullum e pianistas eruditos. Não vejo nada semelhante na canção brasileira atual.
Esse caminho dos novos intérpretes, por sinal, é fundamental para a fertilidade das canções. Cantoras como Madeleine Peyroux, Diana Krall, Norah Jones e muitas outras interpretam canções de compositores vivos - Madeleine registrou lindamente Cohen, Diana escolheu do marido Costello Almost Blue - e ainda fazem as suas próprias, embora sem o mesmo padrão. Por aqui, talentos como Rosa Passos, Céu, Cibelle, Astrud Gilberto e Maria Rita têm cantado novos autores e assinado suas próprias letras. (Isso faz pensar na falta de jovens vozes masculinas num país de cantores como Orlando Silva, Dorival Caymmi, João Gilberto e Tim Maia, além de Milton, Djavan e Caetano.) Quem sabe, pouco a pouco, sem a desculpa de que o sertanejo ou o funk é que são realmente 'populares', novos Chicos e Caetanos se estabeleçam. Por ora, eles mesmos não têm sido muito consoladores.
O MUNDO É UM PALCO
A encenação de O Avarento, de Molière, no Teatro Cultura Artística, consegue essa façanha rara de ser fiel não sendo convencional. A direção de Felipe Hirsch conjuga interpretações que fogem ao naturalismo - que recorrem a trejeitos, exageros e deslocamentos sem perder precisão - com a cenografia de Daniela Thomas, suas habituais caixas aqui adequadas à vida espartana do protagonista. Paulo Autran é o centro irradiador de tudo, com seu domínio criativo de tempos e ênfases, e os demais atores estão muito bem, com destaque para Elias Andreato. O resultado é uma peça que, embora situada num tempo distante em que casamentos eram decididos por dotes, respira atualidade; sem precisar forçar a barra, há até recados para o momento brasileiro como quando se diz que 'os fins justificam os meios' está na moda. Certos vícios humanos são eternos como as grandes obras de arte.
LITERÁRIAS
No mundinho literário brasileiro é comum ver manifestações de adolescência intelectual cometidas por muita gente que já está na meia-idade. São aquelas invejas e picuinhas contra pessoas e iniciativas que supostamente fazem mais sucesso. Escritores que não conseguem ser publicados por determinadas editoras ou publicações de renome passam a negar a validade desse renome em blogs ou pasquins de suas patotas. Resenhistas que jamais tiveram energia para escrever a obra que estão resenhando atacam a pessoa do autor por seu local de nascimento, profissão, idade, preferência política ou até aparência física. Eternos candidatos a 'alternativos' ou 'malditos' não disfarçam seu despeito contra eventos para os quais não foram convidados, e criticam aquilo que nem sequer leram. Gente que nunca esteve numa aula de certa instituição acha que os alunos que têm dinheiro para pagá-la não passam de 'burguesia' ou 'elite' - termos normalmente usados como xingamento por esses recalcados, que mal conhecem seus significados exatos. O pior é que nem sabem ser contestadores, porque seus textos de botequim têm mais adjetivos que idéias.
POR QUE NÃO ME UFANO
A carta de Fernando Henrique Cardoso divulgada na semana passada pode até ter sido uma jogada política ou uma autocrítica sincera, mas soa como uma reação de alguém mais preocupado com sua imagem histórica. Afinal, ao preferir Lula, o eleitorado está dizendo que não vê diferença entre ele e seu antecessor - na economia, na ética, nos programas sociais - ou então acha o atual governo superior. A campanha de Geraldo Alckmin, que nem sabe se é Geraldo ou Alckmin, é borocoxô, sim, em forma e conteúdo. Mas acho que nem José Serra, com mais currículo nacional, estaria em situação melhor. FHC sabe.
Do outro lado, enquanto a campanha de Lula continua somando irregularidades, podemos nos divertir lendo Delfim Netto, para quem a indignação dos que criticam a corrupção petista é 'serôdia' - calma, só quer dizer 'fora de época', 'tardia'. E elogia Lula por não ter impedido a instalação de uma CPI para investigar o mensalão. Segundo o ex-ministro do regime militar, deputado que foi do honestíssimo PP e agora está no incorruptível PMDB, Lula deixou que a CPI funcionasse livremente... E nem se dá ao trabalho de comentar que as poucas provas que não foram destruídas não mostraram caixa 2 ou compra de votos, mas um esquema de transferência de dinheiro de um grupo lobista para os políticos aliados. Ele, afinal, conhece como ninguém o mundo das licitações e emendas, dos empreiteiros, dos banqueiros, das propagandas estatais. Delfim sabe.
Aforismos sem juízo
Pobre o país onde se prefere bater a debater.