O Globo |
5/9/2006 |
Pina Bausch nos fortalece contra o horror Precisamos urgentemente de beleza. Andamos muito desconfiados, porque ela nos enganou durante muito tempo. "Ahhh!... nossas matas, nossas cascatas, a formosura das mulheres, ahhh!... os pampas, os pantanais... ohhh!.." - sempre dissemos essas frases para esquecer o horror social do país. E não só isso; acreditamos sempre na beleza de nossos ideais utópicos, de nosso "futuro glorioso" que não chega nunca. A História brasileira é uma novela de ilusões. Enquanto sonhamos, eles roubam. Enquanto acreditamos no futuro, o sistema político nos mente no presente. A democracia é bela, mas abre as comportas do lixo nacional a um ponto insuportável. Estas últimas semanas foram feias de ver: além dos escândalos diários que a PF nos exibe, vimos os discursos superficiais e místicos dos intelectuais e artistas, as racionalizações dos "militantes imaginários" (aqueles que acham que lutam pelo povo de pijama em casa...), vimos a babaquice do PSDB (ninguém sabe mais o que significam os tucanos), tivemos de agüentar a cara-de-pau absoluta do Lula (e, pelo jeito, mais quatro aninhos de baixo nível). Vemos que a mentira venceu, que o cinismo do petismo e do presidente conseguiu enganar a população, convencendo-a de que o roubo do dinheiro público em estatais, fundos de pensão, bancos oficiais (que chegam a mais de dois bilhões escondidos no Exterior) não passou de "caixa 2" ou "sobras de campanha". Seduzido e enganado, o povo vai eleger a mentira, a hipocrisia e a incompetência. A feiúra é saudada como "necessária" na política. Alem disso, o Lula, conseguiu jogar todo o lixo (que ajudou a produzir) em cima do Congresso e da sociedade, no velho bordão do "sempre foi assim", emergindo como única coisa pura, popular. Será eleito pela mentira que transformou em verdade, saindo da condição de réu para a de vítima. Estamos vivendo no ponto inverso da babaquice esperançosa de antes. Caímos numa espécie de perversão do lixo, um estranho amor pelo circo pegando fogo, uma volúpia pelo excremento. O brasileiro tinha a paixão pelo auto-engano; agora, está com o frisson da ignomínia. Não temos mais para onde olhar. Tudo é feio. Foi aí que a companhia de Pina Bausch voltou ao Brasil. Como sempre, fui correndo vê-la, para passar três horas (ao menos...) contemplando a mais pura forma de arte da atualidade. Isso: Pina Bausch consegue milagrosamente fazer uma arte que posso até chamar de "terapêutica". Dentro de um país violento, humilhado, ansioso, ela consegue nos dar três horas de delicadeza e paz. Esquecemos o mundo lá fora e ficamos somente diante da poesia. E não é apenas o êxtase de uma sinfonia ou um grande filme. A grande arte de Pina, a grande arte em geral, nos deixa ver a máquina leve que organiza a composição estética, o segredo do processo criativo. Ela não nos emociona apenas; ela nos ensina. Aquela coisa do "beleza é verdade, e verdade é beleza" se realiza diante de nossos olhos iluminados por ela. A importância artística de Pina é imensa porque ela é das poucas pessoas que conseguiram descrever nosso tempo com angústia e compaixão. Isso: uma rara mistura de melancolia com esperança. Há na arte, desde o pós-guerra, o sentimento do absurdo, o horror, a desesperança crítica. Os mendigos de Beckett vagueavam em desertos sem saída. O "Estrangeiro" de Camus pedia que saudassem sua morte com "vivas" de ódio. Hoje, na literatura, restou um anarquismo sem rumo, detritos masoquistas de uma desesperança superficial, "kafkas pop", "sub-joyces" despejando um automatismo narrativo porra-louca e superficial. Pina Bausch, que já é filha da Guerra Fria, não está nessa. Ela sempre deixa um fio de felicidade passar por entre seus bailarinos solitários, desunidos, dessincronizados, nas tristes roupas cotidianas, pobres ternos, pobres vestidinhos, desamparados transeuntes do nada para o nada. Pina criou um minimalismo afetivo, sem a frieza rancorosa de tantos artistas "engajados", sem a negra alegria de saudar a morte, de festejar a impossibilidade, o juízo final. Pina vê sempre uma melancólica beleza, "uma intensa luz que não se vê", vê uma paz dark, diante deste mundo que os americanos estão destruindo com sua feira de ofertas e com a sordidez psicopata do Bush e sua gangue. Pina Bausch capta o imperceptível. Seus atores/bailarinos/personagens estão sempre sozinhos, tentando o amor, tentando uma união que se desfaz e se tenta de novo. Pina vê com amor nossos clichês e aprofunda-os, salva-os, raspando-lhes a casca da repetição. Pina humaniza nossos defeitos, nossos ridículos e nos oferece a própria vida reciclada com carinho, virando-nos em viajantes de nós mesmos. Seus atores/personagens oscilam entre desejo e repressão, entre liberdade e medo. Ver seus espetáculos é sempre uma aula de "grande arte" e, por entre os corpos bailando, percebemos as influências mais límpidas da arte contemporânea. Vemos Fellini, claro, vemos Chaplin, vemos na cenografia o suprematismo, o minimalismo mais espontâneo, sem a exibição vanguardista, vemos Mondrian, Malevitch, vemos os irmãos Marx repetindo as mesmas routines de chanchadas, vemos Beckett raspado de sua depressão doentia, vemos um painel amplo do melhor da criação do século XX e, claro, tudo interpretado pela espantosa capacidade técnica dos bailarinos. É isso aí. Ao sair do teatro Alfa, eu estava limpo, oxigenado, purificado, pronto para mais uma temporada no inferno da estupidez nacional. "Que vengam los sangressugas!" |
Entrevista:O Estado inteligente
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terça-feira, setembro 05, 2006
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