O choque entre Zidane e Materazzi lembra um
outro, que ocorre na política deste país tropical
A cena que ficará da Copa do Mundo da Alemanha não será um gol, nem
uma artística jogada de meio-de-campo, nem uma impossível defesa de
goleiro. Será o espetacular golpe que, com seu cocoruto raspado,
brilhante e duro como bala de canhão, o francês Zinedine Zidane
disparou no peito do zagueiro italiano Marco Materazzi. O golpe em si
já foi suficientemente comentado e mostrado na TV. Faltou enfatizar a
singularidade das cenas imediatamente anteriores – uma troca de
olhares e palavras que em nada fazia prever a explosão que se seguiu.
Foi um momento supremo na arte da dissimulação. Os dois vinham
andando, de volta ao campo francês de defesa, assim como quem passeia
no bosque, distraído, e troca eventuais palavras com o circunstante.
De repente, não mais que de repente...
Materazzi revelou-se um virtuose na arte de xingar fingindo, para
quem via de longe, que balbuciava amenidades. Ele até olhava para os
lados, às vezes para cima, jamais olho no olho do outro, como se
espera que ocorra antes de uma agressão física. Pelo seu jeito vago,
até se diria que comentava o bom tempo que fazia, ou, mais lírico,
que recitasse um poema aos astros. No entanto, de sua boca saíam
palavrões que, amplificados pela sonoridade da língua italiana, eram
como dardos lançados contra a susceptibilidade do francês. Segundo
Zidane contaria depois, Materazzi ofendeu sua mãe e sua irmã. Mas não
é que simplesmente tenha xingado a mãe e a irmã. Ele xingou a mamma –
a mamma! – e de quebra a sorella. Para ouvidos treinados no italiano
como os de Zidane, isso é muito mais grave do que simplesmente xingar
a mãe ou a irmã. Para culminar, Materazzi as qualificava com aquela
palavra que quer dizer prostituta e que em italiano termina
em ...ana, muito mais sonora e ofensiva do que a mesma palavra em
outras línguas. La mamma e la sorella! Ambas ...ane! O francês sentiu
como um terremoto a corroer-lhe as entranhas, mas...
Mas, se o jogo era a dissimulação, Zidane também foi perfeito.
Primeiro, lado a lado com Materazzi, enquanto o outro despejava suas
imprecações, ele não dizia nada. Parecia que não era com ele. Depois
começa uma corridinha e distancia-se do italiano. Se alguém
desconfiasse que ele acabara de ser alvo de uma provocação,
concluiria em seguida que, sabiamente, fingira que não ouvira e,
friamente, agora voltava ao seu campo para guardar posição. De
repente, não mais que de repente, ele estanca, dá meia-volta e
investe com fúria de touro picado contra o desafeto. O entrevero
entre Zidane e Materazzi lembra – a comparação pode parecer estranha,
mas lembra, sim – o comportamento dos candidatos Lula e Alckmin, a
propósito da crise de segurança em São Paulo.
Se há algo que se exige de um governador, e especialmente dos
governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro, nos dias que correm, é
uma política de segurança pública com claro plano de vôo e resoluta
execução. O candidato Alckmin apregoa que, como governador, saiu-se
bem nesse item. Até que em seu mandato houve conquistas, como a
redução do número de homicídios. Mas permaneceu em estado de
cataclismo a situação nos presídios, e os presídios – sabe-se com
clareza, há algum tempo – são o centro nervoso de onde emana a ação
do crime organizado. Os atentados de maio, reeditados na semana
passada, fizeram desmoronar o castelo de areia que era a política de
segurança de Alckmin. No entanto, ele finge que não é com ele. "Crime
é uma questão de caráter nacional", dizia na semana passada. E
assobiava e olhava para o alto, num divórcio entre as
responsabilidades que lhe cabem e o ar que ostenta, digno de um
Materazzi, ao fingir dissertar sobre as estrelas enquanto vocifera
palavrões.
A tática de Lula consiste em dizer que não tem nada com isso, mas
que, bondoso que é, está pronto a ajudar o estado, desde que
solicitado. Não tem nada com isso? Em boa hora, o coronel José
Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública
(governo FHC), ressuscitou, num trabalho recente, uma afirmação de
2003 do ministro Márcio Thomaz Bastos. Dizia ele então que o governo
tinha como o primeiro de seus "princípios fundamentais" que "a
responsabilidade da segurança pública no Brasil cabe ao governo
federal, cabe a este governo federal". E prosseguia: "Não ao governo
federal anterior, não somente aos governos estaduais, mas ao governo
Lula, que não pode ser cúmplice pela pior forma de cumplicidade, que
é a omissão com o crime". São palavras de uma boa vontade típica do
período em que o governo ainda está fresquinho.
Lula e o ministro Márcio Thomaz Bastos hoje oferecem a São Paulo a
ajuda de uma tal Força Nacional que, se é que realmente existe (há
dúvidas) e pode ser mobilizada (há dúvidas), caso venha a pousar na
Avenida Paulista jamais saberá voltar para casa (há certeza). As
ofertas de ajuda têm a utilidade de sugerir que o outro não é capaz
de dar conta do problema. São um primor de dissimulação. Lembram
Zidane, ao se fingir de desentendido enquanto prepara um torpedo
contra o peito do adversário.