Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 15, 2006

REINALDO AZEVEDO São Paulo para São Paulo

O GLOBO

Por mais que você se dedique a um estudo profundo da moral e da
ética, duvido que chegue a uma formulação mais precisa e enxuta do
que a de São Paulo na I Epístola aos Coríntios: “Tudo me é permitido,
mas nem tudo me convém” (ICor 6,12). É dessas frases-emblema cuja
compreensão distingue a civilização da barbárie. A essência da
formulação kantiana está aí embutida: só posso praticar atos que, se
generalizados, concorreriam para o bem. “Ah, mas o que é o bem?”,
pergunta o demônio do relativismo. Para os nossos propósitos, chamemo-
lo um pacto que garanta os direitos individuais e que estabeleça
normas gerais de conduta que concorram para a liberdade.

Há dias, li neste GLOBO, uma afirmação de Marco Aurélio Garcia,
assessor especial de Lula, que me deixou estarrecido. Indagado se o
chefe teria algum constrangimento em dividir palanque com
mensaleiros, o nosso pensador deu um pé no traseiro de São Paulo e
metralhou: “Constrangimento nenhum. Constrangimento seria não ter
voto.” Entendo. Marco Aurélio, em suas reflexões, fazia uma escolha.
E, ao fazê-lo, indicava o mundo em que prefere viver e em que
pretende que todos vivamos. Tudo lhe convém, menos não ter votos.

Este jornal também noticiou uma diretriz política do presidente Lula:
ao entregar ao PMDB os Correios, de porteira fechada, o Babalorixá de
Banânia disse que cada partido é responsável por sua pasta. Não
poderia ele próprio responder por seus subordinados. Ousava pôr um
fim na República. Dez séculos de evolução do Estado se diluíam em sua
glossolalia.

Lula regredia ao Estado medieval. E não emprego a palavra no sentido
tonto, habitual, de coisa “terrível” — alguns dos meus pensadores
prediletos são da Idade Média. Refiro-me a um Estado dividido em
ducados, em que os senhores têm os seus próprios exércitos e devem ao
rei uma vassalagem formal. A centralização se faz no mercado
paralelo, com os Marcos Valérios. E há um problema adicional: os
nossos pensadores monásticos são Frei Betto e Dom Tomás Balduíno. A
Idade das Trevas foi uma invenção do totalitarismo iluminista
francês. A de Lula é real.

São Paulo está de novo em pânico por conta da ação de terroristas que
se organizam como um partido, com pauta de reivindicação e fachada
legal, na forma de advogados e de uma ONG que reúne supostos
familiares de presos. Em breve, teremos uma guilda formada por
“presodescendentes” — talvez ganhem cotas nas universidades. Outras
ditas organizações não-governamentais e seus porta-vozes — alguns no
jornalismo, montados na grana de entidades estrangeiras que protegem
chimpanzés e hominídeos ideológicos — lamentavam as origens sociais
da violência.

O discurso de uma nota só se resumia a condenar as ações da polícia e
fazia dos algozes do homem de bem as vítimas de uma tal “sociedade”.
Um deles nos convidava a aprender as lições que nos estavam sendo
ministradas pelos bandidos. Segundo dizia, as ações de assalto ao
estado de direito nos diziam que temos sido perversos com os
excluídos. Na sua fórmula, quanto mais presos, mais violência, o que
faz supor que o contrário também é verdadeiro: extingue-se o que ele
deve considerar a Bastilha social, e a paz volta a reinar.

Reparem como há sempre um culpado imponderável e inimputável para
crimes tangíveis. Assaltou? Culpe-se a pobreza. Matou pai, mãe e
cachorro e foi ao cinema comer pipoca? Ressuscite-se a teoria do
trauma. No depoimento que deu à CPI do Tráfico de Armas, Marcola,
apontado como líder do grupo que aterroriza São Paulo, assim
justificou a existência de sua organização: “Essas organizações vêm
no sentido de refrear essa natureza violenta, porque o que ela faz?
Ela proíbe ele [o preso] de tomar certas atitudes que pra ele seria
natural (sic), só que ele estaria invadindo o espaço de outro, o
senhor entendeu? De outro preso. E elas vêm no sentido de coibir isso
mesmo.”

Marcola parece ter lido Hobbes e São Paulo. Os nossos caridosos
intelectuais de esquerda, pelo visto, não. Ele quase pede para ser
reprimido, mas os proxenetas das misérias humanas não deixam.
REINALDO AZEVEDO é jornalista (blogdoreinaldoazevedo.blogspot.com).

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