Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 15, 2006

É pior do que se pensava

VEJA

Além de entupir artérias, a gordura trans
favorece o acúmulo de gordura visceral


Karina Pastore


Não há gordura mais nociva à saúde do que a gordura trans. Utilizada para dar mais sabor, melhorar a consistência e prolongar o prazo de validade de alguns alimentos, ela está na pipoca de microondas, nos salgadinhos de pacote, nos donuts, nos biscoitos, nas bolachas, nos sorvetes, na maioria das margarinas ou dos lanches fast-food. A trans é um importante fator de risco para infartos e derrames. Eleva as taxas de LDL, o mau colesterol, e de triglicérides e reduz os níveis do colesterol bom, o HDL. Pois bem, o que já era ruim se revelou ainda mais nefasto. Um estudo coordenado por pesquisadores da Universidade Wake Forest, nos Estados Unidos, e apresentado recentemente no 66º encontro anual da Associação Americana de Diabetes, mostrou que dietas ricas em trans favorecem o depósito de tecido adiposo no abdômen, a famosa "barriguinha de chope", conhecida no jargão médico como gordura intra-abdominal ou visceral. Por sua proximidade com órgãos vitais como intestino, fígado, pâncreas e rins, a gordura visceral aumenta a probabilidade de ocorrência de doenças cardiovasculares, alguns tipos de câncer e diabetes tipo 2, entre outros males. A relação entre gordura trans e gordura visceral é investigada há pelo menos uma década. Mas só agora, pela primeira vez, foi possível estabelecer que os laços entre as duas são muito mais estreitos do que se supunha. "Ficamos perplexos com os resultados da pesquisa", disse a VEJA o patologista Lawrence Rudel, coordenador do trabalho. "A gordura trans é muito mais perniciosa do que se poderia imaginar."

Durante seis anos, Rudel e sua equipe acompanharam cinqüenta macacos-vervet, espécie nativa do Sul africano – e muito semelhante ao homem na metabolização de gorduras. Divididos em dois grupos, os animais foram alimentados com dietas de valor calórico idêntico. Do total de calorias, 35% provinham de gorduras, o que deveria manter o peso corporal das cobaias inalterado. A única diferença é que um grupo recebeu parte dessas calorias (8%) sob a forma de gordura trans e o outro, a mesma quantidade de gordura monoinsaturada. Encontrada sobretudo em alimentos de origem vegetal, a monoinsaturada é a gordura do bem, abundante no azeite de oliva. O objetivo do estudo era analisar o papel da gordura trans na formação da aterosclerose. O que se viu, ao término dos trabalhos, é que o impacto da trans sobre o organismo vai além de artérias entupidas por placas gordurosas – o que explica o alarme do médico Rudel:

Mesmo que a dieta seja controlada, para manutenção do peso, o consumo de gordura trans engorda. Os macacos do grupo trans ficaram 7,2% mais pesados.

O peso extra ficou todo concentrado na região abdominal. Ou seja, a gordura trans é estocada no organismo sob a forma de gordura visceral.

Imagens de tomografia computadorizada revelaram que o consumo de alimentos ricos em trans promoveu uma redistribuição do tecido adiposo, fazendo com que parte da gordura subcutânea migrasse para o abdômen. Os macacos do grupo trans acumularam 30% mais gordura visceral do que os outros animais.

Os mecanismos pelos quais a gordura trans propicia o depósito de gordura visceral ainda não foram completamente desvendados pela ciência. "A hipótese aventada é a de que a gordura trans desequilibra a produção do hormônio insulina, o que estimula a fabricação de tecido adiposo abdominal", diz o endocrinologista Freddy Eliaschewitz, pesquisador do Hospital Heliópolis, em São Paulo. O fígado humano não foi programado para processar altos teores de trans. Isso porque essa gordura é rara na natureza – só é encontrada (e, ainda assim, em baixíssimas quantidades) em laticínios e carnes de determinados ruminantes, como a vaca e o carneiro. Mergulhadas em gordura trans, as células hepáticas tornam-se resistentes à ação da insulina, o que eleva as taxas do hormônio no sangue . Forma-se assim o cenário perfeito para o desenvolvimento do diabetes tipo 2. "Os achados dos pesquisadores de Wake Forest dão base a estudos epidemiológicos importantes, sobretudo os que relacionam o consumo de gordura trans ao diabetes tipo 2", diz o endocrinologista Alfredo Halpern, chefe do Grupo de Obesidade e Doenças Metabólicas do Serviço de Endocrinologia do Hospital das Clínicas, de São Paulo. Um desses trabalhos, o "Nurses' health study", da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, com 85.000 mulheres, durante dezesseis anos, mostrou que o consumo de gordura trans aumentava em 39% os riscos de diabetes. Já se havia associado também a gordura trans ao aumento no sangue de duas substâncias indicativas de inflamação celular, a interleucina e a proteína C-reativa. "Quanto maior é o grau de inflamação das células, maiores são as probabilidades de desenvolvimento do diabetes", diz o cardiologista Raul Santos, diretor da unidade clínica de dislipidemias do Instituto do Coração, em São Paulo.

A gordura trans começou a ser utilizada em larga escala na década de 80. Fabricada a partir da solidificação de óleos vegetais, ela era tida como uma opção mais saudável à gordura saturada, abundante em carnes vermelhas, leites e ovos. Nos anos 90, porém, começaram a surgir os primeiros estudos sobre os malefícios da trans, principalmente os que relacionavam o seu consumo a problemas cardiovasculares. Não demorou muito para que a trans fosse satanizada como vilã da boa saúde. Hoje, autoridades sanitárias de alguns países obrigam os fabricantes de alimentos industrializados a identificar e discriminar no rótulo de seus produtos a quantidade de gordura trans contida neles. No Brasil, o regulamento entra em vigor no próximo dia 31. A Organização Mundial de Saúde preconiza que a ingestão de gordura trans não ultrapasse 1% do total calórico diário. Numa dieta de 2.000 calorias, isso equivale a 2,2 gramas – ou um biscoito recheado de chocolate.

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