Cada um faz, é claro, a matéria que quer ou dá ao jornal em que manda a manchete que acha melhor, aquela que atende ao perfil do seu consumidor — digo, do seu público leitor. Felizmente, é da democracia. A única força política relevante que tentou censurar a imprensa depois da redemocratização foi o PT, como sabemos. Ainda não conseguiu. Mas talvez chegue lá. Se houver realmente pensadores espertos por aquelas paragens, e eu acho que os há (ainda que não concorde com eles), nem precisam de instrumentos formais. A imprensa faz sozinha um estrago danado.
Matéria que serve de manchete à Folha desta segunda é um desses casos em que a falsa evidência serve à depredação da inteligência e da verdade. Segundo o jornal , “PT e PSDB dividem as alianças com mensaleiros”. (ler a seguir). É mais uma contribuição da Folha à tese de que todos os partidos e todos os políticos, no fundo, são iguais e de que o Brasil é assim há 500 anos — quem sabe desde o tempo da princesa Urraca...
Eis um juízo que, evidentemente, não faz justiça a desiguais dos dois extremos. Os decentes são prejudicados, e os indecentes, protegidos. Na média, quem ganha é o PT. Ricardo Berzoini não teria qualquer problema em assinar o texto. Nem Lula. Nem Márcio Thomaz Bastos. Desde que estourou o escândalo do mensalão, eles estão dizendo justamente isto: “somos todos iguais”.
Vamos ver. O que a matéria assinada por Fernando Rodrigues e Silvio Navarro chama de “mensaleiros”, designação que também vai parar na manchete, são os partidos que tiveram pessoas envolvidas com o chamado escândalo do “mensalão”. É uma inovação. Matéria e jornal dão um novo conteúdo ao termo e, assim, justificam o texto e a manchete. Até então, “mensaleiro” era o deputado ou senador que havia se envolvido no escândalo. Mesmo o PT, que teve presidente, secretário-geral e tesoureiro metidos na tramóia, era tratado como “partido que abriga mensaleiros”. A não ser assim, e sendo todos os membros do partido mensaleiros, só cabe e a Folha começar assim as suas frases quando se referir a Lula: "O mensaleiro Luiz Inácio..." Vai fazê-lo?
O que confere verossimilhança à reportagem? O fato de que tanto PT como PSDB se coligam, nos Estados, com PTB, PL e PP. Por qualquer razão estranha, não explicada, o PMDB, que teve seu então líder, José Borba (PR), envolvido até o pescoço no imbróglio, não aparece na lista. Ora, sabemos que o jornal considera o assunto importante. Tão importante que resolveu dar manchete — vá lá, a alternativa numa segunda magra, era o tetra da Itália, certamente notícia menos controversa.
Ora, a reação do leitor é mais do que previsível: a maioria tende a se indignar e a fazer um meneio com a cabeça: “Eta gentinha! Tá vendo? Depois falam do Lula!”. É evidente que o conjunto açula uma certa censura moral. E, para que assim não fosse, para que o processo político então tivesse preservada a pureza que a realidade dos fatos conspurca, forçoso seria que se reunissem, de um lado, “partidos sem-mensaleiros” e, de outro, “partidos com-mensaleiros”. Notável! Dado que, para a Folha, o senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) e o deputado Roberto Brant (PFL-MG) são tão “mensaleiros” como João Paulo Cunha (PT-SP), o que também é falso, tais legendas estariam, sei lá, impedidas de se coligar entre si e ate consigo mesmas, para levar ao extremo o absurdo lógico.
Uma aliança pura deveria, segundo esse critério, opor, de um lado, PPS, Prona e PDT (houve alguém do PDT? Acho que não...) e, de outro, vejam vocês, nada menos do que PT, PMDB, PP, PL, PTB, PFL, PSDB e a Mãe Joana. Seria, assim, uma espécie de aplicação política do critério de maluquice de Simão Bacamarte, d’O Alienista, de Machado de Assis. Trancaríamos todos os partidos na Casa Verdade e elegeríamos Enéas o nosso guia. Mensaleiro ele não é!
Com todo o respeito, a reportagem não existe. Nem a manchete. Jornalismo, a cada dia fica mais claro, não foi feito para educar ninguém. Mas também não precisa deseducar. De resto, aponto o preconceito: por que, então, dizer que “PT e PSDB dividem aliança com mensaleiros”? Quer dizer que “mensaleiros” são só os outros, os partidos de segunda linha? O PT também não é? E o PSDB (ao menos para o jornal)? A manchete correta, seguindo os termos do veículo, não os meus, deveria, então, ser: “Mensaleiros e mensaleiros dividem as alianças com mensaleiros”...
A única coisa relevante sobre o assunto noticiada neste fim de semana estava no Globo deste domingo (ler a seguir), assinada por Soraya Aggege. Ali, sim, há notícia. Ela dá conta de que mensaleiros, os de verdade, aqueles que pegaram a grana, que meteram a mão na bufunfa, vão dividir palanque com o presidente Lula. Mais do que isso. Marco Aurélio Garcia, um capa-preta do PT, diz que não há constrangimento nenhum nisso; que constrangimento mesmo seria não ter voto.
Ah, ok, também eu poderia fazer aqui embaixadinhas pra galera e dizer: “Sabem? É todo mundo igual mesmo. Os mensaleiros estão em todos os lugares”. Não, não são todos os iguais. O PT é “mais igual” do que os outros não porque eu queira, não porque tal afirmação lustre os meus eventuais preconceitos. Mas porque só o PT tentou e tenta ainda montar um Estado paralelo, de que o mensalão é apenas um dos tentáculos.
Insisto - a Folha não tem que prestar serviços a ninguém: aos leitores, ao Brasil ou ao processo político. Não tenho paciência para essa conversa mole sobre a contribuição da imprensa para a construção da cidadania etc e tal. Acho esse papo enjoado. No geral, essa bobajada não passa de uma das rubricas do marketing dos veículos de comunicação. É fato, no entanto, que as leituras políticas que eles fazem, a despeito de sua intenção — também não julgo intenções — colaboram com uma ou com outra estratégia dos atores políticos.
A manchete desta segunda da Folha dá uma inestimável contribuição ao PT. Se, por qualquer razão, o caso do mensalão vier à tona na campanha, a turma de Lula já pode exibir no horário eleitoral gratuito: “PT e PSDB dividem as alianças com mensaleiros”. E pronto. E Lula entrará em seguida para dizer, querem ver?, que “o PT errou, sim, ao fazer o que os outros partidos faziam”. Mas que, é óbvio, pretende não errar mais. Tudo, em suma, não teria passado da velha tramóia, da velha conspiração, para derrubar um presidente operário.
Os indignados com a política já têm do que se alimentar. A manchete que serve como uma luva à estratégia eleitoral do PT já pode integrar o grupo das “matérias isentas”. E o ombudsman já pode se orgulhar de que o jornal faz mesmo uma “cobertura equilibrada”. E, é claro, esta é uma questão que não vai parar nos sites de monitoramento da mídia. Eles também são isentos. Jornais costumam fazer tabelas contábeis de reportagens "contra", "a favor" e "neutras". como que administrando remédios que o leitor precisa tomar. Gostaria de saber em que categoria esta seria classificada.
Folha:
PT e PSDB dividem apoio de mensaleiros em 23 Estados
Antes criticados por elo com mensalão, PP, PL e PTB são disputados em alianças regionais
As três siglas, sem candidato na eleição presidencial, estão em 15 coligações estaduais com petistas e em outras 15 com tucanos
FERNANDO RODRIGUES
SILVIO NAVARRO
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Numa campanha presidencial em que um dos eixos principais será quem é mais ou menos ligado a casos de corrupção, o PT e o PSDB fizeram coligações com partidos chamados de "mensaleiros" -PP, PL e PTB- em 23 Estados e no Distrito Federal. Quando se inclui PFL na conta, apenas o Rio de Janeiro fica de fora.
PP, PL e PTB são chamados de mensaleiros por terem parlamentares envolvidos no esquema de remuneração financeira ilegal em troca de apoio ao governo, conforme denunciou a Procuradoria Geral da República. O próprio PT também se enquadra nessa categoria, e o PSDB foi envolvido indiretamente no escândalo -o senador Eduardo Azeredo, que presidiu o partido, foi acusado de receber recursos do publicitário Marcos Valério em 1998, quando concorreu à reeleição.
O número de apoios que parte das siglas mensaleiras dá a coligações petistas e tucanas é idêntico: 15 a cada. Em alguns locais, a trinca se divide entre o partido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o do tucano Geraldo Alckmin.
Em seis Estados, tanto PT quanto PSDB recebem apoios de mensaleiros: Amapá, Ceará, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Sergipe. Os tucanos conseguiram apoio da trinca mensaleira completa em Goiás, Minas Gerais, Roraima e Tocantins. O PT não atraiu o grupo completo em nenhuma unidade da Federação.
Partido que mais critica o escândalo do mensalão na TV, o PFL tem atitude bem mais leniente quando o assunto são alianças locais. Há coligações de pefelistas com siglas mensaleiras em 15 Estados e no Distrito Federal. Em três localidades, a trinca completa se uniu com o PFL.
A configuração completa das coligações nos Estados só será conhecida em alguns dias -há casos contestados na Justiça. As próprias direções nacionais dos partidos ainda não tinham noção exata de quais seriam seus aliados pelo interior do país. O levantamento foi realizado pela Folha na sexta-feira.
Com a queda da regra da verticalização para alianças partidárias entre siglas sem candidato a presidente, não há combinação política igual em dois Estados. As coligações são as mais variadas, pois o Brasil tem 29 partidos e 27 unidades federativas -e quase tudo ficou permitido, pois só há sete candidatos a presidente já confirmados.
Força das alianças
Quando se observa só a qualidade do potencial eleitoral das alianças locais e como elas podem, em tese, ajudar os candidatos a presidente, o PSDB e Alckmin levam alguma vantagem em relação a Lula e ao PT.
O PSDB e o PFL, juntos na chapa presidencial, também aparecem coligados em 14 Estados para as disputas locais. Tucanos e pefelistas tiveram 27,7% dos votos para deputado federal no país em 2002.
Já o PT e seu parceiro preferencial, o PC do B, conseguiram união completa nos 26 Estados e no Distrito Federal. Juntos, petistas e comunistas registraram 20,6% dos votos para a Câmara em 2002. Outra forma de medir a competitividade eleitoral de Lula e de Alckmin é verificar em quantos Estados seus partidos recebem apoio formal do PMDB. Nessa conta, petistas se saem um pouco melhor do que os tucanos.
O PSDB está junto com os peemedebistas em oito disputas estaduais: Alagoas, Distrito Federal, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Paraná, Pernambuco, Rondônia e Santa Catarina -eleitorado equivalente a 20,3% do país. O PT coligou-se a peemedebistas na Bahia, no Ceará, em Minas Gerais, na Paraíba e em Sergipe- 25,4% dos eleitores brasileiros.
Seria incorreto, entretanto, considerar só alianças formais para avaliar o potencial eleitoral de cada partido. O acerto formal rende aos associados a soma dos seus tempos de TV na propaganda garantida por lei -dois terços dos minutos destinados a esse fim são calculados com base no tamanho das bancadas de deputados federais de cada agremiação.
Mas há muitas coligações informais pelos Estados. O presidente nacional do PDT, Carlos Lupi, concorre ao governo do Rio e admite apoio informal dos pedetistas a tucanos no Maranhão, Minas Gerais, Pará e Paraíba. A sigla tem Cristovam Buarque candidato à Presidência. "É necessário respeitar os acordos regionais", diz.
O coordenador da campanha tucana à Presidência, senador Sérgio Guerra (PE), se esquiva quando o assunto é aliança com siglas envolvidas no mensalão. "Alguns partidos do mensalão podem até nos apoiar em certas áreas, mas os mensaleiros nunca nos apoiariam."
O presidente do PT, deputado Ricardo Berzoini (SP), recusa a "estigmatização" de legendas devido à crise do mensalão. "Sempre rejeitamos a tese de que os partidos estão comprometidos. Não se pode estigmatizar. O PT também teve problemas, não vai fugir, dizer que não enfrentou o mesmo processo", afirmou.
O GLOBO:
O PAÍS
Rio, 09 de julho de 2006 Versão impressa
Acusados do mensalão vão dividir palanque de campanha com Lula
Soraya Aggege
SÃO PAULO. A maioria dos políticos denunciados à Justiça como membros da “quadrilha do mensalão” dividirá palanques com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em sua campanha pela reeleição. Alguns já lançaram suas candidaturas fazendo propaganda da proximidade com o governo. Apesar de serem considerados suspeitos, o presidente não vê constrangimento nisso e está preparado para as críticas, segundo seu assessor especial e vice-presidente do PT, Marco Aurélio Garcia.
— Não aceitamos o conceito de mensalão. Eles vão participar do palanque do presidente como todos os que apóiam a reeleição. O único constrangimento seria se eles não tivessem votos — diz Marco Aurélio, que também coordena o programa de governo de Lula.
O governo e o PT prevêem que o fato será explorado pela oposição, mas decidiram enfrentar a situação.
— Até agora eles não foram condenados. Quem falar deve apresentar provas concretas — diz Marco Aurélio.
Enquanto os palanques não são montados, na largada das campanhas para deputado alguns já fazem propaganda das conquistas obtidas com o governo para as bases eleitorais.
João Paulo e Luizinho associam campanhas a Lula
O ex-presidente da Câmara dos Deputados João Paulo Cunha (PT-SP) e o ex-líder do governo Professor Luizinho escaparam da cassação, mas foram denunciados ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelo procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, como membros da “quadrilha” do mensalão. Em campanha para continuar na Câmara, usam fotos de Lula e divulgam benfeitorias obtidas com o governo em seus boletins.
No PT, a expectativa é que João Paulo, Antonio Palocci e José Genoino funcionem até como puxadores de votos para a legenda. Genoino e Palocci devem ter privilégios para suas campanhas. Genoino já ficou com o número 1313, considerado o mais importante do partido. Para um dirigente estadual do PT, os dois foram injustiçados.
Embora esteja em campanha, a maioria dos candidatos tem evitado a imprensa. Palocci chegou a marcar uma entrevista por telefone, mas não atendeu mais ligações. O ex-presidente do PT José Genoino também se recusa a dar entrevistas. João Paulo e Professor Luizinho não atenderam os pedidos de entrevistas. Segundo interlocutores dos candidatos, eles não querem comentar com jornalistas o passado, referindo-se ao mensalão.
Já o deputado José Mentor (PT-SP), também denunciado pelo procurador-geral, afirmou que a ordem é defender o mandato do presidente Lula e trabalhar pela sua reeleição. Segundo ele, a eleição será o verdadeiro julgamento da população sobre os citados no escândalo.
— Vou prestar contas de meu mandato e mostrar provas da minha inocência para quem me questionar. Não acho que será uma eleição mais difícil que as outras. Será, para mim, uma prestação de contas — diz Mentor.
Para o deputado, os votos não serão definidos pela proximidade ou não dos candidatos com o governo federal, mas nada impede que os eleitores considerem positivo esse detalhe:
— Não é apenas porque sou amigo do presidente Lula que vou ganhar mais votos. Claro que faz parte juntar as duas coisas. Nós faremos uma defesa do governo Lula, pois somos da base dele.
Candidatos do grupo do mensalão apoiarão governo
Na antiga base aliada, os acusados também já se movimentam para ocupar os palanques do presidente. O presidente afastado do PL, Valdemar Costa Neto, que renunciou para não ser cassado, é candidato e defenderá o governo Lula, segundo sua assessoria.
— Costa Neto vai apoiar o presidente Lula e deverá acompanhá-lo em alguns eventos. A única motivação da sua candidatura é ajudar o próprio partido (PL) a ganhar mais votos — diz seu assessor Vladimir Porfírio, depois de explicar que Costa Neto não fala mais com jornalistas.
Um dos pivôs do escândalo, que admitiu ter recebido dinheiro do valerioduto para ajudar o PL eleitoralmente, Costa Neto tem feito sua campanha a partir de prefeitos da região do Alto Tietê, em São Paulo, prometendo benefícios e investimentos para as cidades, no caso de reeleição.
Outros candidatos denunciados, como os deputados Pedro Henry (PP-MT) e José Borba (PMDB-PR), que renunciou ao mandato para escapar da cassação, também pretendem fazer campanha para Lula, segundo alguns interlocutores. Já o deputado Vadão Gomes (PP-SP), que acabou inocentado na Câmara e nas denúncias do procurador-geral, ainda não decidiu se apoiará Lula ou Geraldo Alckmin (PSDB). Mas adianta que não terá constrangimentos.