O Estado de S. Paulo
12/7/2006
A solenidade em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva entregou
ao PMDB o comando dos Correios é o exemplo definitivo de como a
gestão petista radicalizou todas as distorções que têm desmoralizado
a República e depauperado o Estado brasileiro. O primeiro aspecto
relevante a ser destacado é o uso do ancestral sistema das capitanias
hereditárias, pelo qual os colonizadores portugueses conseguiram, na
base do mínimo esforço, extrair de forma predatória os recursos
naturais de Pindorama; espoliar as populações nativas e os degredados
d’África; e dilapidar as riquezas produzidas além-mar, em solo
americano. Em benefício de Lula se pode dizer que o loteamento das
“boquinhas” na máquina pública federal não foi inventado pelo PT e é,
sim, uma herança que vem de longe, muito longe, no tempo. Mas talvez
não seja excessivo lembrar que o presidente e seu partido convenceram
a Nação a mudar a direção de seu destino para abolir vícios malsãos
como este - na base de “jamais verás governo assim” ou “não há, ó
gente, ó não, patota como esta do nosso partidão”.
Agora, com a ajuda do medo que os adversários do PSDB e do PFL têm da
natureza combustível do próprio rabo-de-palha, o PT e o chefe do
governo pretendem fazer o mesmo eleitorado perceber as evidências de
que eles são seus semelhantes em tudo, inclusive no cinismo com que
praticam e justificam suas “maracutaias” (apud Lula). O conivente
silêncio com que a oposição permitiu ser assada a pizza do mensalão
nos fornos da Câmara, contudo, não poderá calar a evidência do
desastre da coalizão formada por derrotados do PT nas últimas
eleições e aliados de ocasião, que afundou o País num mar de
desmandos de corrupção e erros terríveis de administração.
A hora de lembrar é esta, às vésperas da reeleição já apregoada aos
quatro ventos. Principalmente pelo fato de o escancaramento da opção
do PMDB - sob o comando do líder no Senado, Ney Suassuna (PB), um dos
suspeitos do último escândalo, o da máfia das ambulâncias - ter dado
ao presidente a oportunidade de explicitar à Nação sua mais recente
estratégia para escapar de qualquer acusação que o possa envolver na
sujeira revolvida no sórdido episódio do “valerioduto”. Após se ter
dito “traído” por companheiros do governo e do partido, sem delatar
nenhum deles; distribuído, de forma socialista, a culpa pelo crime
fiscal do “caixa 2” em campanha a todos os partidos; ungido os
eventuais culpados pela bênção do próprio perdão e acusado os
adversários de havê-los torturado; Sua Excelência vem entregar,
juntamente com os cargos, o ônus exclusivo dos eventuais delitos
neles cometidos aos meeiros de gestão.
“É mais que justo que o partido que tenha um ministro no governo seja
o responsável por todo o ministério”, disse o mestre na arte de
“tirar o corpo fora”, como se diz na gíria do lúmpen que o elegerá e
perfeitamente entendida pelos banqueiros que, embriagados pelos
lucros obtidos em seu governo, o aplaudem com fervor e mantêm seus
adversários a pão e água.
Justiça seja feita: não se trata de uma atitude nova de Sua
Excelência. Ele já não ouviu as denúncias do então secretário de
Obras e vice-prefeito de Campinas, Antônio Costa Santos, que lhe
contou detalhes da roubalheira promovida pelo prefeito petista ao
qual era subordinado. E fez ouvidos de mercador às evidências de
irregularidades nos contratos das prefeituras do PT com o senhorio do
luxuoso apartamento onde morava de graça em São Bernardo, que lhe
foram contadas por Paulo de Tarso Venceslau. Seu desapreço pela
leitura não deixa dúvidas de que não tem conhecimento do fundador
dessa prática do “não sei, não me contaram, nada tenho que ver com
isso”, que foi o ídolo, não dele, mas de seu ex-lugar-tenente José
Dirceu: Stalin. Simon Montefiore conta num livro como o georgiano
manobrava os magnatas bolcheviques, levando-os ao massacre múltiplo e
mútuo, dando a impressão a algozes, vítimas e sobretudo à população
de que ele era o “único a não saber”. Sem a cultura nem os requintes
de crueldade do tirano comunista, nosso “guia máximo” cumpre à
perfeição seu papel de “supremo irresponsável” pelos malfeitos de
seus auxiliares, ao mesmo tempo que garante a continuidade no poder
se beneficiando o quanto pode do farnel de bondades que o governo sob
sua égide distribui a banqueiros e miseráveis - sempre a cada um
pelos serviços que poderá prestar ao amo e senhor de todos os súditos.
Esta não é, também, uma exclusividade do chefe do Executivo. Desde a
promulgação da Constituição de 1988, o Congresso Nacional tem agido
como se nada tivesse que ver com a hora do Brasil. O nosso é o regime
da mamata impune e sem compromisso, também comungado pelo Poder
Judiciário, cujos membros praticam as maiores barbaridades em nome
das leis que interpretam a seu bel-prazer, embora aleguem ser
impotentes para mudá-las. O discurso do presidente e candidato à
reeleição na entrega da capitania hereditária (por ironia do destino,
exatamente aquela em cujo núcleo apodrecido estourou o tumor da
corrupção do mensalão, com o flagrante de uma propina filmada e
divulgada) é a consagração definitiva dessa prática perversa na
política nacional: a busca do poder total sem contrapartida de
responsabilidade. O espírito folgazão, sem compromisso com nada que
não seja a própria ânsia de mandar, do chefe da Nação talvez venha a
autorizar a iniciativa de alguém com poder suficiente para modificar
o dístico da Bandeira Nacional. Com a ordem enxovalhada pelos
facínoras do crime organizado e de uns tais movimentos sociais e o
progresso esfrangalhado pela desfaçatez com que os grupos que se
assenhoraram do poder rapinam os escassos recursos da sociedade
brasileira, é o caso de inscrever: “Poder total com responsabilidade
zero.”