Blog do Reinaldo Azevedo
Todos nós, da classe média, queremos segurança, certo? Certo. E ainda vemos com indisposição, quando não com hostilidade, a polícia. Isso é fácil de verificar. Basta abrir os jornais. Se, em vez de quase 60 agentes penitenciários e policiais, tivessem sido mortos 60 criminosos em dis meses, haveria passeatas contra a violência e a impunidade. Há algo de errado nisso tudo. De muito errado. A reportagem mais importante da imprensa brasileira neste domingo está na capa do caderno Metrópole, do Estadão, assinada por Bruno Paes Manso. Traça o perfil de Gegê do Mangue e do bairro que o viu nascer, a Vila Madalena, uma área de descolados de São Paulo. Ali o agora número 2 do PCC vendia maconha e cocaína, numa heterogênea e heterodoxa comunidade que se reunia e ainda se reúne em seus bares. Agora, sim, dado o devido contexto, precisamos recuperar aquela historia da "elite branca" de que falou certa feita o governador Cláudio Lembo. A questão é simples: até que os narizes pátrios — desta e de outras pátrias — não tenham claro que cheirar o seu pó corresponde a pôr, na próxima esquina, uma arma na cabeça do próprio filho, mãe, mulher, pai ou marido, a solução estará sempre distante. A Segurança Pública é uma questão policial, com aspectos sociais, é claro. Consumir droga é uma questão de ordem moral: se todos consumirem, o mundo fica melhor? Leia trecho da reportagem, com link para assinantes: “Difícil era entrar no banheiro dessas casas, porque a fila não andava. A cocaína, batida com gilete na tampa da privada antes de ser cheirada (o que a galera chama de "caratê boliviano"), garantia o pique nas noitadas. "Vanguarda, aqui como em qualquer lugar, sempre esteve ligada ao consumo de drogas. Uma balada sem dealer (traficante) não tem graça", diz A.C., produtora cultural que freqüenta a noite da Vila. Quem ganhou dinheiro e poder com essa sede por novas experiências foi Gegê do Mangue. Era o "patrão". Nos anos 90, antes de Gegê ser preso, a boca funcionava no Mangue, favela que existe na Vila desde os anos 60, entre as Ruas Fradique Coutinho, Fidalga e Rodésia. Ele e outros meninos ficavam nas esquinas durante a madrugada, tocando uma espécie de drive-thru de drogas.”
TEXTO DO O ESTADO DE S PAULO:
Na Vila Madalena, o cabeça do PCC
Apontado como sucessor de Marcola, Gegê do Mangue cresceu no crime vendendo drogas para descolados
Bruno Paes Manso
Bares, boemia, cultura de vanguarda. Se Nova York tem no Village seu reduto, São Paulo tem a Vila Madalena. Foi lá, na zona oeste, na quarta-feira, que o selo Demônio Negro lançou o livro artesanal 12, com autores da nova literatura paulistana, no bar Mercearia São Pedro, na Rua Rodésia. Coisas da Vila.
Enquanto isso, a alguns quarteirões dali, um ônibus era incendiado na esquina das Ruas Fidalga e Aspicuelta. À primeira vista, nada mais distante do espírito da Vila do que a investida do crime organizado.
Mas é lá, na Vila, que nasceu, cresceu e apareceu para o mundo do crime Rogério Jeremias de Simone, de 29 anos, o Gegê do Mangue, considerado hoje o segundo homem na hierarquia do temido Primeiro Comando da Capital. Graças a um componente que costuma vir associado a bares, boemia, cultura de vanguarda: drogas. Tanto na Vila como no Village.
Nos anos 90, quando a música eletrônica ainda era uma onda que começava, a Torre do Dr. Zero, na Mourato Coelho, era um reduto de iniciados. Jornalistas, VJs, DJs, publicitários, produtores culturais, escritores e descolados se encontravam em bares como Matrix, Super-Bacana, Jungle, Borracharia, Brancaleone, para trocar idéias, dançar, ver, ser visto.
Difícil era entrar no banheiro dessas casas, porque a fila não andava. A cocaína, batida com gilete na tampa da privada antes de ser cheirada (o que a galera chama de "caratê boliviano"), garantia o pique nas noitadas. "Vanguarda, aqui como em qualquer lugar, sempre esteve ligada ao consumo de drogas. Uma balada sem dealer (traficante) não tem graça", diz A.C., produtora cultural que freqüenta a noite da Vila.
Quem ganhou dinheiro e poder com essa sede por novas experiências foi Gegê do Mangue. Era o "patrão". Nos anos 90, antes de Gegê ser preso, a boca funcionava no Mangue, favela que existe na Vila desde os anos 60, entre as Ruas Fradique Coutinho, Fidalga e Rodésia. Ele e outros meninos ficavam nas esquinas durante a madrugada, tocando uma espécie de drive-thru de drogas.
Na balada, bastava baixar no quarteirão, dizer a droga que se queria, dar uma volta na quadra e pegar a encomenda. "Não tinha erro. Quando não se conseguia no Mangue, logo ao lado tinha a boca da Rua Djalma Coelho. Em uma delas, sempre era possível se arrumar", lembra P., morador do bairro, médico.
Formada por uma mistura de imigrantes portugueses, operários e estudantes, a Vila ganhou fama de bairro alternativo ainda na década de 60. Nos anos 50, a construção dos Cemitérios São Paulo e do Araçá fomentou o crescimento da Vila, juntamente com a imigração de portugueses da região do Minho. "Até hoje, quando rezo as missas, ouço um 'Ai, Jesus' de uma ou outra criança descendente desses imigrantes", conta o padre Pedro Antônio, da Igreja Santa Maria Madalena e São Miguel Arcanjo, na Rua Girassol.
Nos anos 60, com a criação da Cidade Universitária, as casinhas da Vila viraram moradia para os estudantes da Universidade de São Paulo. Abriram-se os bares, mecas da contracultura, com intermináveis debates regados a cerveja e maconha. "Eram hippies, comunistas, portugueses, sambistas, trabalhadores, que sempre conviveram em harmonia aqui no bairro. Esse convívio, por sinal, sempre foi um de seus pontos altos", diz o presidente do Partido Verde na cidade, José Luiz de França Penna, morador do bairro e organizador da Feira da Vila.
Nos anos 80 e 90, a Vila foi sitiada pelos bares. O Empanadas, na Wisard, e o Sujinho, na Fradique, são dessa fase. As bocas começam a ter um movimento mais intenso, fomentado por clientes vindos de fora.
Essa é a época de João Carlos Mendes dos Santos, o João do Mangue, de 36 anos, nascido e criado na Vila. Apesar de vender drogas, ele conseguia se relacionar em diversas esferas. Era conhecido por gente da Igreja, líderes políticos e sambistas da escola local, a Pérola Negra, onde chegou a compor letras de música.
Por causa dos negócios, João voltava e meia ia preso. Hoje, só o que se sabe é que está solto. A última prisão aconteceu em 2004, quando foi detido em flagrante com um tijolo de maconha na Fidalga. A polícia estimava na época que ele movimentava de 4 a 5 quilos de cocaína por semana. Quando João saía de circulação, os negócios do Mangue eram tocados pelos "aviões", meninos de confiança que o ajudavam a negociar com os clientes que passavam de carro ou faziam entregas nos bares e casas noturnas da área. Na cobertura dessas brechas é que surgiu o pupilo Gegê.
Sete anos mais novo que João, Gegê não chegou a fazer grandes mudanças na estrutura das bocas. Elas continuavam como um negócio relativamente pequeno, que não deixava os traficantes ricos. Gegê também entrava e saía da cadeia, ocasiões em que era substituído pelo irmão mais novo, Cristiano - filiado ao PCC e morto há três meses, numa perseguição policial.
Foi nas penitenciárias, de onde Gegê não saiu mais desde 2000, começou a encorpar no mundo do crime. Ficou importante a ponto de os deputados da CPI do Tráfico de Armas perguntarem a Marcola se ele conhecia Gegê quando tomaram seu depoimento, no mês passado, em Presidente Bernardes. "Conheço. Tá preso aqui. A gente vive tirando cadeia nos mesmo lugares", disse, às gargalhadas, Marcola ao deputado federal Luiz Couto (PT-PB), que o interrogava.
A ascensão de Gegê no Partido do Crime, como os presos chamam o PCC, só foi detectada pela polícia em 2003. Na ocasião, ele já era o piloto (gerente) da Penitenciária de Avaré, onde estava presa na época a cúpula do grupo. E foi lá que Gegê passou a assumir tarefas de responsabilidade no PCC, como a participação no assassinato do juiz-corregedor de Presidente Prudente, Antônio Machado Dias, vítima de um atentado em março de 2003.
Com a influência e a rede de contatos montada na cadeia, Gegê mudou o patamar dos negócios. Desde o começo de 2000, o drive-thru no Mangue minguou. O grosso do tráfico é destinado a bocas fora da região. Acabou o varejo. Começou o atacado.
Falar em Gegê na região do Mangue é tabu. Isso vale para escolas, postos de saúde, líderes políticos e religiosos, numa espécie de lei do silêncio no coração cultural de São Paulo. Mesmo quando um ônibus pega fogo na esquina das Ruas Aspicuelta e Fidalga, no meio da agitação noturna. Fidalga, aliás, era a rua onde Gegê morava antes de ser preso.
COLABOROU MARCELO GODOY