Ainda estou escrevendo em Berlim, mas espero que, neste domingo (tomara que seja de sol, mas aceito chuva perfeitamente satisfeito), já possa ir ver minha incomparável turma de boteco, para ouvir e contar as novidades. Peço desculpas por escrever mais uma vez sobre a Copa, mas ainda é difícil evitá-lo, principalmente na cidade que mais a festejou e à qual faz muito tempo me afeiçoei. Depois, prometo, volto ao meu querido território do Leblon e ao país onde nasci e me criei e pelo qual tenho tanto amor e apego que, apesar de ter tido várias oportunidades, nunca consegui escrever um romance fora do Brasil. Não dá certo, parece que tenho de ver meus compatriotas, escutar sua fala e respirar a brisa que beija e balança o auriverde pendão.
Estamos habituados a considerar a Copa de 50, quando eu tinha nove anos e ouvi tudo pelas ondas curtas de nosso possante rádio RCA, como a que mais nos feriu e deixou traumas. Até quem nasceu várias décadas depois sabe dessa Copa e já assistiu ao silêncio funéreo do Maracanã depois do jogo contra o Uruguai, entremeado pelas lágrimas de heróis como Barbosa e Danilo, atraiçoados por um revés de que nunca na verdade nos recuperamos, nós, os que sempre batemos no peito com o orgulho de ter o melhor futebol do mundo, mesmo quando as evidências desmentiam essa convicção.
Eu também me sentia assim e não vou dizer que esqueci 50. Ninguém vai esquecer 50, nada vingará 50. Mas, nesta clara e ensolarada manhã berlinense, diante de um janelão que dá para um jardim cheio de pássaros, alguns dos quais lembram — talvez exagero causado pela saudade — os nossos, acredito que a Copa terminada no domingo passado foi a Copa da Desilusão. Para um sujeito de 65 anos, parece até frescura. Não sou o que outrora se chamava de “macróbio”, mas já vi o suficiente para desenvolver uma espécie de “cinismo do bem”, a aceitação até irônica de que a vida nos leva aonde muitas vezes não queremos ir e que, no fundo, é simples: nascimento, existência e morte, o resto não passando de mistérios que não podemos desvendar.
Então, por que ter desilusões? Desilusão é sentimento para jovens, para os que ainda sofrem por amores infelizes, para quem espera que algo seja diferente, na humana condição. Além disso, futebol é apenas futebol. O esporte mais popular do mundo, o que mobiliza mais, de paixões a dinheiro, muito dinheiro em nossos tempos, mas apenas um esporte. É verdade e compreendo os que até o acham um novo ópio do povo, um mero consolo para as nossas desditas coletivas, por ele tão mitigadas que passamos a suportá-las com maior resignação e até com a alegria visceral, que faz parte de nós.
Mas, talvez em aparente paradoxo, futebol não é apenas um esporte. Futebol, e não somente para os brasileiros, é bem mais do que isso. É a vida do torcedor obscuro, que com ele, não interessa se vicariamente, se transporta à glória, se transfigura em vencedor, identifica-se com os reis do gramado, às vezes até confere sentido a uma história de outro modo muito pobre no dia-a-dia e nas parcas perspectivas que se entrevêem, isto quando se entrevêem, pois às vezes não há nem isso. É sinônimo de alegria e tristeza, é freqüentemente metáfora para a própria existência.
E amor à própria terra e orgulho ou vergonha, que se imiscuem nos corações de todos. Está muito fora de moda falar-se em patriotismo, talvez seja até politicamente incorreto. Mas existe. E não somente em mim, mas, ouso dizer, na maioria dos brasileiros. Não é exclusivamente o amor ao esporte que move os brasileiros a se juntarem para torcer por qualquer atleta brasileiro, por qualquer equipe que nos represente. É a ânsia por auto-estima, é a expressão da angústia de sermos eternamente o país do futuro, são os nossos pobres egos combalidos que ali se projetam, na busca da glória, não guerreira, mas da habilidade, inteligência e competência. Podemos e fazemos piadas sobre nós mesmos como povo, mas, no fundo, são piadas amargas, são maneiras de descarregar até mesmo o autodesprezo que muitos escondem.
Eu mesmo já disse que o importante é vencer e não competir, mas isto é outra “piada”, porque não reflete exatamente a verdade. Futebol, ao contrário do que certos metidos a pragmáticos dizem, não é somente jogado com o objetivo de vencer, futebol é arte e espetáculo. Senti isso bem na carne, ao presenciar, aqui na Alemanha, gente aplaudindo belas jogadas dos times adversários, mesmo quando significavam a perda de um gol ou uma vantagem significativa. Jogadores adversários eram também aplaudidos, ao entrarem em campo ou saírem. Reconhecia-se e premiava-se o artista que tinha dado um belo espetáculo de técnica ou garra, transcendendo em muito a mera competição. Isto, a seu modo, toda arte faz e o sentimento estético, não importa de que feição, é inerente ao ser humano.
Por isso chamo essa Copa de 2006 de a Copa da Desilusão. Não estou me referindo agora a suspeitas de armação, mutretas secretas ou algo assim. Estou lembrando que, por mais frustrado que me sentisse como torcedor, jamais senti vergonha da seleção. Senti raiva, xinguei jogadores, técnicos e árbitros, mas nunca senti vergonha. Nunca antes, quero dizer. Desta vez senti. Não éramos nós jogando, eram “eles”, uma casta distante de nós e até o menino (já não tão menino assim) Ronaldinho Gaúcho chorou lágrimas de crocodilo, para no outro dia dar uma festa de arromba. Prefiro tomar emprestadas as palavras do Cristo e dizer que ele não sabia o que fazia com o coração de seu — quem sabe? — ex-povo. Quanto a mim, sei que nunca se deve dizer nunca, mas nunca mais torcerei por uma Copa do mesmo jeito. Perder se aceita, passar vergonha e humilhação é para quem não tem vergonha.