"As bengaladas de Yves Hublet foram
bengaladas morais. Encarnados no
escritor, os brasileiros olharam pelos
olhos de Yves Hublet e agiram através
do braço de Yves Hublet"
O Brasil ainda não está perdido. A capacidade de indignação ainda existe. Aquele escritor de 67 anos, barba branca e uma bengala na mão, nos redimiu. O Palácio do Planalto, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal abusaram da paciência dos brasileiros no caso do mensalão. O país foi obrigado a aceitar tudo bovinamente, como se só tivesse o direito de dizer amém. Mas eis que nosso vingador sai das páginas do Velho Testamento, qual um profeta de cajado na mão, olhar furioso, cabelo ao vento, indignado com a pouca-vergonha, o descaso e a mentalidade de nossas autoridades, que enxergam o Brasil como se ele não passasse de um conluio entre amigos do poder. De repente, o profeta abre caminho na multidão e coloca-se frente a frente com o deputado José Dirceu, num corredor da Câmara. Sem vacilação, desce-lhe a bengala na cabeça. Uma vez. Duas vezes. Três vezes.
Yves Hublet, paranaense morador de Brasília, autor de livros infanto-juvenis, explicaria depois que teve um "súbito ataque de revolta". Estava diante do rei da chicana, do rei da embromação, e resolveu dar uma lição ali mesmo naquele que é acusado de ser também o rei do mensalão. Nesse momento bíblico, de um simbolismo patriarcal, Yves Hublet não estava ferindo José Dirceu fisicamente. Bengalas são feitas de madeira leve, e um velho que precisa desse instrumento para caminhar não tem força a ponto de infligir sofrimento físico a um homem taludo como José Dirceu. Não, nada disso. As bengaladas de Yves Hublet eram bengaladas morais. Milhões de brasileiros estavam ali, encarnados espiritualmente no corpo frágil do escritor. Essa multidão olhou pelos olhos de Yves Hublet e baixou o braço direito três vezes através do braço de Yves Hublet.
O escritor não planejou o assalto. Estava na Câmara para tratar de um convênio para distribuição de livros. O encontro com Dirceu foi casual. Yves Hublet contaria depois que se tornou instrumento de um impulso que não conseguiu controlar. Talvez fosse a força oculta do Brasil, indignado com a nova classe de arrivistas que chegou ao poder com um discurso baseado na moralidade e na eficiência. O gesto de repúdio estava congelado no ar. Yves Hublet o materializou. Lavou a alma da nação.
Quando Moisés vagava com o povo hebreu pelo Deserto do Sinai, Jeová lhe ordenou que falasse com uma pedra para dela obter a água de que a multidão precisava. Moisés estava furioso com o comportamento cínico de seu povo. Em vez de argumentar com a pedra, pegou o cajado e a golpeou com violência. A água jorrou. Jorraria talvez do mesmo jeito, se Moisés tivesse conversado com a pedra. A Bíblia não explica. É possível igualmente que o Supremo Tribunal Federal votasse rapidinho a favor da continuação do processo de cassação de José Dirceu, sem as bengaladas de Yves. É possível que, na mesma noite, o Congresso votasse pela cassação do deputado, como fez. O fato é que as bengaladas de Yves Hublet estavam pela manhã na primeira página de todos os jornais, no exato dia em que o Supremo esqueceu as firulas legalistas e o Congresso, sem mais delongas, resolveu encerrar a carreira parlamentar do guerrilheiro do trambique.