Lula só pensa em 2006, enquanto
seu governo, dividido em guetos,
é criticado até por ministros
Otávio Cabral
Beto Barata/AE![]() |
Palocci: da tróica de 2002, ele é o único a seguir no cargo, mas perdeu estofo político |
A campanha reeleitoral do presidente Luiz Inácio Lula da Silva continua sendo feita à base de discursos diários, mas já entrou também na fase das medidas concretas. Na semana passada, como de praxe, o presidente falou para platéias diversas, no Brasil e no exterior, exaltando seus feitos. Na Colômbia, disse que seu governo "é para aqueles que apenas tinham o direito de gritar que estavam com fome, mas não tinham o direito de comer" – e deixou o país carregando na bagagem o apoio do prefeito de Bogotá à sua reeleição. Em Brasília, disse que o pagamento antecipado da dívida de 15,5 bilhões de dólares com o FMI era uma prova "ao mundo" de que "este país é dono do seu nariz". No terreno das providências concretas, a reeleição esteve ainda mais viva. Na terça-feira passada, Lula reuniu-se com três ministros, dois assessores e o deputado Carlito Merss, do PT de Santa Catarina, para discutir o tema que concentra as energias do governo neste momento: a aprovação do Orçamento da União para 2006, uma peça calculadamente tomada por ações voltadas para pavimentar o caminho de Lula para a reeleição.
Há presentes para cada segmento expressivo do eleitorado. Para a classe média, o governo pensa em dar um reajuste de 10% na tabela do imposto de renda – ainda que a correção lhe ceife 2,8 bilhões de reais de receitas no ano. Para os trabalhadores mais humildes, planeja um reajuste maior no salário mínimo. Em vez de 321 reais, como estava previsto, a idéia agora é aumentá-lo para 350 reais – ainda que a diferença provoque um impacto de 4,6 bilhões de reais no rombo da Previdência Social. Para os servidores públicos federais, categoria que tradicionalmente votava no PT mas cuja penúria salarial fez com que se afastasse do partido antes mesmo do escândalo do mensalão, o governo acena com um reajuste geral de 29%, coisa que não acontece desde 1995, primeiro ano do governo de Fernando Henrique Cardoso. Por fim, para agradar aos deputados e senadores, que afinal terão a última palavra sobre a proposta orçamentária, o governo promete aumentar a verba das emendas parlamentares de 3,5 milhões para 5 milhões de reais, num salto de quase 43% (veja quadro).
O esforço reeleitoral do presidente explica-se pelas imensas dificuldades que se avizinham. Em 2006, Lula não terá nada do que tinha na sua campanha vitoriosa de 2002. Seu partido, soterrado pelo escândalo do mensalão, erodiu seu patrimônio ético e entrou na mais grave crise de identidade de seus 25 anos de vida. Seus auxiliares mais próximos, que compuseram a cúpula da campanha passada, foram atropelados pela crise. Um, José Dirceu, foi demitido e cassado. Outro, Antonio Palocci, perdeu a estatura política, ainda que tenha preservado seu posto e sobretudo a excelência com que o exerce. O terceiro, Luiz Gushiken, foi rebaixado de ministro para assessor. Por fim, nem Lula é o mesmo. Em 2002, Lula era uma promessa, que foi despertando a confiança de parcelas crescentes do eleitorado até chegar a uma vitória eleitoral expressiva sobre o tucano José Serra. Agora, com todo um governo para apresentar, Lula já é uma realidade e, pelo que mostram as pesquisas, uma triste realidade que a maioria do eleitorado gostaria de trocar por algo melhor e que já custou ao presidente o apoio de 20 milhões de eleitores até o momento (veja reportagem).
O desafio de Lula para 2006 fica ainda maior quando se constata que, tal como as coisas estão, não há nenhum motivo para achar que seu governo poderá deslanchar. Ao contrário. Na semana passada, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, fez um diagnóstico demolidor do governo do qual participa desde o primeiro dia. Disse ele: "O governo não faz sinalizações, não traça cenários, objetivos, nem estabelece meios para atingi-los. Há uma sensação geral de desânimo no país. A sensação de desânimo está afetando as iniciativas da sociedade e decisões de cidadãos ou empresas". Em outras palavras, Furlan disse que não existe propriamente um governo e, em existindo, falta-lhe um comandante capaz de dar unidade e apontar um rumo à administração. O pior é que é fácil encontrar ministros em Brasília que, devidamente protegidos pelo anonimato, confessam concordância plena com o diagnóstico de Furlan. "Ele disse o que a maioria dos ministros pensa mas não diz", garante um ministro que entrou para o governo apenas neste ano. A prova cabal de que o que Furlan diz é verdade é o fato de ele não ter sido demitido por Lula.
"Há mais de um mês não falo com ninguém do Palácio do Planalto, não recebo uma orientação", comenta esse ministro. "Tento ajuda para lançar uma campanha publicitária sobre um assunto importante e não consigo nada." O diagnóstico desse ministro – que soa mais como um desabafo – traz um componente claro: o de que o governo, atingido no coração pelo escândalo de corrupção, se estilhaçou em guetos, com cada ministro virando-se como pode, sem uma correia de transmissão. Desde julho, quando assumiu o cargo, o ministro Hélio Costa, das Comunicações, vinha pedindo ao Planalto que organizasse uma reunião com todos os ministros cujas pastas têm alguma relação com a escolha do padrão brasileiro de televisão digital. Na semana passada, chegou a solução: o ministro desistiu de pedir ajuda ao Planalto, convocou ele próprio a reunião e, durante duas horas, discutiu o assunto com representantes de dez ministérios. Outros temas permanecem insepultos. Por exemplo: o cargo de presidente da Anatel, a agência que cuida de telefonia, está vago há mais de dois meses. Existem três candidatos ao cargo, mas o Planalto não se define.
O governo também é alvo de algumas disputas internas que, ficando sem nenhuma arbitragem, acabam produzindo uma paralisia. O Ibama, órgão que cuida do meio ambiente e é subordinado à ministra Marina Silva, é especialista em bater às portas da Justiça em busca de liminares para embargar obras prioritárias para o governo com o argumento de que desrespeitam leis ambientais. Um mínimo de coordenação poderia evitar que isso acontecesse. O caso mais recente é o da Rodovia BR-319, que deve servir para escoar a produção agrícola na região amazônica. Há duas semanas, a obra foi embargada pela Justiça a pedido do Ibama.
A transformação dos ministérios numa sucessão de guetos que não se comunicam entre si pode ser observada até nas mudanças da rotina interna. Nos dois primeiros anos da administração petista, mas sobretudo no primeiro ano, havia um número excessivo de reuniões ministeriais, orientações circulares freqüentes e ministros e assessores viviam recebendo boletins com análises e dicas diversas. Eram providências que, na prática, não faziam o governo andar, mas ao menos estabeleciam canais de comunicação de todos com todos. Hoje, nem isso acontece mais. "Viramos um governo monotemático, inerte, que vive tentando resolver a crise e tocando uma iniciativa de cada vez", analisa, em tom de autocrítica, um dos políticos mais próximos de Lula. As últimas semanas foram um exemplo claro desse comportamento, com o governo preocupando-se integralmente com a discussão em torno do Orçamento de 2006, como se não houvesse outro assunto sério a ser tratado. Nos últimos quinze dias, todas as reuniões de coordenação ocorridas no Palácio do Planalto foram para tratar do Orçamento.
A crise foi tão devastadora para o governo que deixou um panorama de desmonte. O chamado núcleo duro, que se reunia toda semana para discutir a atuação do governo, deixou de existir como tal. Hoje, com outros integrantes, é uma espécie de núcleo de crise, ou melhor, um núcleo que só se preocupa em encontrar meios de manter o nariz acima da linha d'água da crise. A coordenação política é outro setor que deixou de existir na prática. Primeiro, foi comandada por José Dirceu, então todo-poderoso ministro da Casa Civil. Abatido pelo escândalo de Waldomiro Diniz, Dirceu cedeu a coordenação política a Aldo Rebelo, mais tarde eleito para presidir a Câmara dos Deputados. Hoje, o cargo de coordenador político é ocupado por Jaques Wagner, um baiano simpático e falante, mas que não tem influência no Congresso, não tem diálogo com a oposição e não tem interlocução com os governadores. Sua função principal é cuidar da campanha à reeleição de Lula e dar palpites sobre a interminável crise interna do PT – partido no qual, aliás, Jaques Wagner também não tem lá grande influência. Com o governo transformado em comitê da reeleição de Lula, e o que resta dele vagando sem rumo definido, o que se pode esperar de 2006?
No Orçamento para 2006, o governo quer aumentar os gastos que podem melhorar a popularidade do presidente. Além do salário mínimo, que Lula quer elevar para 350 reais, há outros gastos nessa categoria. Os aumentos são sempre superiores aos do ano anterior
BOLSA-FAMÍLIA – De 2004 para 2005, os recursos orçamentários do programa subiram 14%. Agora, para 2006, Lula quer um aumento de 27%, passando de 8,6 bilhões de reais
SALÁRIO DO FUNCIONALISMO – O aumento dos recursos para pagar aos servidores foi de 8,5% de 2004 para 2005. Desta vez, Lula quer aumentar 34%, chegando a 106 bilhões de reais
PUBLICIDADE – De 2004 para 2005, Lula aumentou a previsão dos gastos com publicidade em 3,7%. Para o novo Orçamento, a proposta é elevá-los em 46,5%, destinando 326 milhões de reais à propaganda
EMENDA PARLAMENTAR – O valor destinado às emendas de parlamentares aumentou 17% de 2004 para 2005. Agora, Lula quer destinar 5 milhões de reais para cada parlamentar. Uma elevação de quase 43%