O GLOBO
Estou com saudades de tudo. "Saudades" ou "saudade"? Não sei, devo ligar para o Pasquale Cipro Neto, que outro dia me ajudou, pois eu escrevera "tu fostes" achando que era segunda do singular, pois a outra forma é para "vós". Tenho saudade (s) de meu velho professor de português, magrinho, feito de fios de arame, irritadiço e doce, pf. Luiz Vianna Filho, que me bradava: "O senhor não tem acento circunflexo!", apontando meu nome que meu avô árabe registrara "Jabôr". E continuava: "Jabor é o certo. A única palavra dissílaba da língua terminada em 'or' que tem circunflexo é 'redôr', para diferenciar de 'redor, em volta de', pois redôr é o pobre diabo que fica puxando o sal nas salinas, com um rodo." Lembrei-me do passado, dos miseráveis redôres em Cabo Frio, de minha juventude quando José Dirceu foi cassado nos 257 votos contados. De dia uma nostalgia tomou-me porque olhei uma velha fotografia de jornal, em preto-e-branco, da passeata dos Cem Mil em 1968 na Cinelândia. No meio da multidão da foto, vi emocionado um pequeno rosto granulado — eu mesmo, ali, com 25 anos, sentado no chão, ouvindo os discursos de Vladimir Palmeira e (talvez) de Dirceu?
De noite, quando ele foi cassado, tive um alívio pelo fim daquele martírio do país e também uma tristeza — Dirceu era a sobrevivência do passado em minha vida. E tive uma bruta saudade da utopia. Nunca achei o Dirceu ladrão, apesar de ele talvez não acreditar. Defendi-o até no caso no Waldomiro Diniz (podem ver no jornal), achando que ele tinha sido apenas tolerante com um sem-vergonha "útil". Depois, é que fui perceber a extensão de seu plano "revolucionário". E ataquei-o. Mas, sempre porque ele, do passado em preto-e-branco, tinha querido invadir o presente, hoje, com uma subversão regressista, que poderia nos jogar de volta a um tempo morto. Muito mais do que os milhões desviados, ataquei-o por um pecado maior que ele cometia: a ameaça à democracia e à republica dos últimos 15 anos, ainda frágeis. Ataquei Dirceu ideologicamente, por seu "aventureirismo", "voluntarismo" e "desvio de esquerda" (para usar a linguagem do PT). Muita gente boa ainda acha que "sempre foi assim", mas que Dirceu mereceu a cassação por "corrupção". Mas antes nunca houve uma tentativa de se "tomar o Estado" usando o dinheiro público pelo "bem do povo". Dirceu caiu por uma tentativa que mais uma vez falhou, em nossa esquerda de trapalhões, como foi em 63 ou em 68, no Congresso de Ibiúna.
Mas, mesmo assim, fiquei com saudades de mim, por causa do Dirceu. Tenho saudades de mim ali com o rosto cheio de esperança na passeata, achando que mudava a História e que o mundo era fácil de mexer, tenho saudade da mistura de poesia com revolução que era nossa vida, tenho saudade até do que Dirceu achava que era — bonito, cabelo longo, hippie guerreiro. Tenho saudade desse narcisismo onipotente e inocente.
Como eu gostaria de explicar aos jovens de hoje o que era a infalível "certeza" daquela época remota, o que era a delícia de viver sentindo-se no "bom caminho", na "linha justa", salvando o futuro. Hoje, ninguém sabe o que era o sentimento de harmonia, de totalidade, em um mundo fragmentado e frio. Hoje, os meninos vivem em galáxias de informações, quando não há mais lugar para "A Verdade". Por isso, tenho saudade do tempo em que a fé na esquerda e no amor era absoluta e sinto falta de minha namorada comunista, nós dois no sofá-cama do aparelho clandestino do PCB em Copacabana, o sofá-cama rasgado, com a mola aparecendo, onde nos amávamos antes da reunião da base com medo que chegasse o supervisor, um camarada bolchevista com um doce nariz de couve-flor rosado e com tristíssimos sapatos pretos com meias brancas, que nos falava, melancólico, do imperialismo norte-americano. Tenho saudades dela, linda, corajosa, no apartamentinho com o pôster dos girassóis do Van Gogh e uns livros da Academia Soviética, numa prateleira sobre dois tijolos. Os jovens que nascem no grande deserto virtual não sabem que vivíamos num rio que corria para o futuro, em direção a uma felicidade completa, com lógica, com Sentido. Tenho saudade desse futuro, isso, do futuro que eu e Dirceu tínhamos e que hoje se espraia como uma grande enchente suja, sem foz, um deserto sem ponto final. Hoje sabemos que não há mais futuro nem chegada — só caminho.
Para nós, comunas, até a morte era pequena, como nos ensinava o camarada de nariz rosado: "O marxismo supera a morte, pois, uma vez dissolvido no social, o indivíduo perde a ilusão de existir como pessoa. Ele só existe como espécie. E não morre!". E eu, marxista feliz, sonhava com a vida eterna...
Tenho saudade das madrugadas cheias de esperança, as madrugadas políticas, a boemia de esquerda, soldados de uma guerra invisível. Meu Deus, como eu era importante, como me senti útil quando ajudei um pouco a luta armada, quando levei no meu fusca um casal de feridos sangrando no banco de trás, até um aparelho, quando o herói Stuart Angel pegou o volante e eu fui ao lado, de olhos fechados para não saber onde estávamos, se bem que espreitei pela fresta das pálpebras e vi o casal mancando em direção a um prédio. Tenho saudades desta trágica solidariedade, mas tremi nesse dia pois comecei a entender que não havia apenas um deserto à nossa frente, mas uma avalanche de obstáculos e que íamos acordar de um sonho para um pesadelo. Entendi que éramos fracos demais para moldar a realidade e que a vontade não bastava, pois as coisas comandavam os homens, e a vida tem um curso próprio e misterioso. Entendi que ser político e lutar pelo futuro exigem vagar e respeito pela insânia do mundo e que a tragédia é parte essencial da vida e que tentar saneá-la pode levar a massacres piores. Entendi que luta política se faz com humildade e que só a democracia é revolucionária no Brasil. Fora disso, é o desastre. Dirceu e outros não querem isso. Dirceu tinha um pacto com o passado e por isso foi cassado do futuro.