Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 28, 2010

SERGIO FAUSTO Basta ter olhos para ver

O ESTADO DE SÃO PAULO - 28/02/10


Estive em Caracas antes do carnaval. Respira-se um clima pesado na Venezuela. A responsabilidade não é do El Niño, mas de Hugo Chávez. Seu governo se torna mais repressivo à medida que cresce a insatisfação social em consequência da inflação em alta, da desarticulação do sistema produtivo, do desmantelamento dos serviços públicos de saúde, do aumento da criminalidade, do racionamento de água e energia. Resultado não de fenômenos climáticos ou das maquinações do "império", mas da ineficiência, do voluntarismo e da arbitrariedade que caracterizam, cada vez mais, os dez anos de sua permanência no poder.

Chávez surgiu invocando a figura de Simon Bolívar. Hoje, para fins práticos, quem lhe serve de referência é Cuba. A construção do "socialismo do século 21" passou a orientar o projeto chavista a partir das eleições parlamentares de 2005, quando as oposições desistiram da disputa e os partidos governistas conquistaram 100% das cadeiras da Assembleia Nacional, e do pleito presidencial de 2006, que deu a Chávez seu segundo mandato. Até então, apesar de tudo, o chavismo havia-se movido dentro dos limites da Constituição de 1999, que inovava, mas não rompia com a matriz federativa e liberal da Constituição de 1961. Em desrespeito à Constituição vigente havia-se comportado, isso sim, a direita golpista, quando tentou apear Chávez do poder à força, em abril de 2002. O golpe fracassou, em boa medida, graças à pronta condenação latino-americana orquestrada pelo Brasil, na época presidido por Fernando Henrique Cardoso.

Em 2005-2006, com o controle quase total da situação política, o coronel-presidente engatou a segunda marcha do movimento chavista, agora sob a bandeira do socialismo do século 21, mescla rara e confusa de ideias marxistas, cristãs e "bolivarianas". Nessa etapa, a reforma da Constituição tornou-se seu maior objetivo político. Reformar para concentrar o poder no Executivo federal e na Presidência da República, para permitir a reeleição indefinida, para criar os tentáculos que, por cima de governadores e prefeitos, permitiriam o controle direto do poder local pelo centro do poder, personalizado em Chávez. Reformar para mudar o regime de propriedade e estabelecer as bases de um novo modo de produção. Junto com as reformas, derrotadas em plebiscito no final de 2007, mas mesmo assim implementadas por meio de decretos nos anos subsequentes, vieram a formação de uma milícia popular subordinada à presidência e a criação de um partido, o Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV), sob a liderança de Chávez. Um projeto de tendência totalitária, com um viés personalista, um componente de militarização da vida política e uma vocação a estender sua influência para além das fronteiras nacionais venezuelanas.

O regime vem sofrendo seguidas defecções após abraçar o "socialismo do século 21", várias de peso, como as do general Raúl Baduel, do ex-vice presidente José Vicente Rangel e, semanas atrás, do então ministro da Defesa e vice-presidente Ramón Carrizález. São três, aparentemente, as principais razões para a perda de aliados: a exacerbação do caráter personalista do regime ("eu sou o povo", disse o coronel-presidente há poucas semanas), a acentuação dos seus traços totalitários e o peso cada vez maior de oficiais cubanos no esquema militar e repressivo do governo. Além disso, a subordinação estrita dos conselhos comunais à direção do PSUV tem levado intelectuais e militantes adeptos da participação popular direta à desilusão e ao afastamento. Às defecções se soma a erosão do apoio social ao governo, hoje reduzido, segundo as pesquisas mais recentes, a pouco menos da metade da população.

Nada disso, porém, faz prognosticar o recuo de Chávez. Ao contrário, conquistado o direito à reeleição indefinida no referendo de 2009, o coronel-presidente dobra a aposta até aqui vitoriosa: a polarização maniqueísta entre "o povo" (liderado por ele) e "a oligarquia" (representada pela oposição) e a manipulação das regras do jogo, como a recente reforma eleitoral, que tende a favorecer o PSUV nas eleições de setembro. A estratégia e a retórica do confronto não são novidade. Pela primeira vez, no entanto, os benefícios ao povo estão posto em xeque, pelas razões apontadas no primeiro parágrafo. Com seu apoio social ameaçado, com ex-aliados em fuga, com uma economia débil e serviços sociais e de infraestrutura comprometidos, Chávez age de modo a fortalecer os mecanismos repressivos e aumentar o medo de se opor ao governo: nos últimos meses, uma juíza foi encarcerada por liberar um empresário que se encontrava detido há muito tempo sem processo, a polícia e bandos armados arremetem contra manifestações estudantis, atos e ameaças de expropriação de empresas e imóveis comerciais tornam-se ainda mais arbitrários e intempestivos, etc.

A radicalização chavista aponta perigosamente na direção de uma escalada de violência. Estima-se que haja entre 3 milhões e 6 milhões de armas ilegais no país. Também armada está a milícia popular sob o comando de Chávez. Circulam rumores de toda sorte, incluindo a reedição do "Caracazo", violentos e generalizados protestos de rua ocorridos em meio à crise econômica do final dos anos 80. Teme-se, sobretudo, um autogolpe de Chávez, ao estilo Fujimori, pretextando a necessidade de garantir a ordem em face de "circunstâncias excepcionais".

Do Brasil, até aqui, até onde nos é dado saber, nem sequer uma nota de preocupação. Lula faria bem se deixasse claro a Chávez que complacência tem limites. Que os valores (a democracia) e os interesses do Brasil (a estabilidade política na região) não se subordinam a eventuais afinidades ideológicas e alianças políticas que possam existir entre setores de seu partido e o castro-chavismo. Se não o fizer, assumirá, por omissão, responsabilidade pelas imprevisíveis consequências da escalada repressiva em curso na Venezuela

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